No livro de Marshall McLuhan e Quentin Fiore, The medium is the massage (o erro no título é propositado, “massage” em vez de “message”) lê-se o seguinte: “A roda é a extensão do pé, o livro é a extensão do olho, a roupa é a extensão da pele, os circuitos elétricos são a extensão do sistema nervoso central”.
Jorge Luis Borges, no início dumas das palestras compiladas em Borges oral, disse algo semelhante, mas defendendo que o livro é a única extensão mental: “Dos vários instrumentos do Homem, o mais surpreendente é, sem dúvida, o livro. Os outros são extensões do seu corpo. O microscópio, o telescópio, são extensões da sua visão; o telefone é uma extensão da voz; depois temos o arado e a espada, extensões do seu braço. Mas o livro é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação”.
Creio que, sobre esta questão, McLuhan — dizendo ser o livro a extensão do olho — não terá sido tão certeiro quanto Borges. Porém, afirmar que o livro é a única extensão mental (todas as outras são do corpo), é incorreto: um disco, uma fotografia, um desenho ou um vídeo, por exemplo (para não falar de novas tecnologias e da internet), também são extensões da memória e da imaginação — tanto quanto um livro pode ser —, são maneiras de guardar memórias fora do cérebro e de representar a fantasia fora dele.
Roger Bartra, em Antropología del cérebro (e antes em alguns artigos), diz que a mente se expandiu num exocérebro: “Quero recuperar a imagem do exocérebro para me referir a circuitos extra-somáticos de natureza simbólica. Já conhecemos os diferentes sistemas cerebrais: o sistema reptiliano, o sistema límbico e o neocórtex.
Acho que podemos acrescentar um quarto nível: o exocérebro”. A incapacidade de reter mais conhecimento através do que a biologia oferece fez com se criasse uma rede fora do cérebro, a que chamamos cultura (no seu sentido mais lato), uma extensão do universo mental, mais resistente no que respeita à memória e muito mais extensa, pois não se confina ao tempo de vida individual nem ao limite dessa mesma caixa craniana (a gravação externa é virtualmente infinita), cuja presença assume a forma de bibliotecas, escolas, museus, bem como estruturas sociais e circuitos simbólicos e linguísticos.
Outra vez Bartra: “Estamos muito habituados a utilizar enormes bibliotecas, bancos de dados gigantescos e repositórios imensos de informação que acessamos pela internet. Estas são, evidentemente, memórias artificiais que funcionam como próteses para apoiar e expandir as limitações da nossa capacidade natural de armazenar informações dentro da cabeça.
As memórias artificiais, pequenas ou grandes, são o exemplo mais óbvio do que chamei de redes exocerebrais. Estes circuitos externos de memória incluem todo o tipo de registos (baptismais, cadastrais, civis, etc.), arquivos documentais, museus, mapas, tabelas, calendários, agendas, cronologias, cemitérios, monumentos, cerimónias comemorativas e as já mencionadas bibliotecas, bases de dados e internet.
A complexidade destas próteses que guardam a memória coletiva é avassaladora”.Além disso, é importante notar que este cérebro externo não serve apenas como depósito de informação, pois coloca esse conteúdo em constante diálogo de modo a criar e imaginar novos caminhos, novas interpretações e alternativas.
Acho interessante, neste ponto, recuperar a ideia de McLuhan, que os meios são extensões do corpo, e não apenas da mente. Aliás, ele próprio o afirma, dizendo que essas extensões das faculdades humanas são tanto psíquicas como físicas.
Ou seja, existem de facto muitas extensões do corpo (a roupa é extensão da pele, a roda é extensão do pé, etc.), tal como existem várias que são extensões da mente (além do livro, a pauta musical, a gravação e reprodução sonora, a fotografia, o filme, a representação teatral, o desenho, a escultura, etc.) e que todas elas, materiais ou imateriais, são o que chamamos cultura (no sentido de tudo o que não é biológico ou natural, mas criado por artifício humano).
Resumindo, podemos acrescentar à ideia de exocérebro, um novo conceito, com uma anatomia alargada: existindo um cérebro externo, este fará parte de um sistema maior (que não se limita à expansão mental), funcionando, tal como a sua contraparte biológica, dentro dum corpo, neste caso, um exocorpo.
A incapacidade de reter mais conhecimento através do que a biologia oferece fez com se criasse uma rede fora do cérebro, a que chamamos cultura, uma extensão do universo mental
afonso cruz