A descrição do mundo não se faz, evidentemente, sem o observador, mas qualquer objeto de atenção também não pode ser descrito autonomamente, o seu contexto é necessário, do mesmo modo que essa mesma descrição só faz sentido tendo em conta o mundo interior do próprio observador. Antoine de Saint-Exupéry escreveu em Lettres de jeunesse à l’amie inventée: “dez testemunhas têm dez versões diferentes da mesma cena”. Aimé Césaire, num texto com o título Poésie et connaissance, que foi apresentado em 1941 no congresso de filosofia de Port-au-Prince, defendeu o conhecimento através da visão poética, um conhecimento que responderia àquilo que a visão científica não aborda ou não trata (“o conhecimento poético nasce do grande silêncio do conhecimento científico”).
A descrição física do espaço é famélica, para usar a expressão de Césaire. Quando descrevo a minha casa de forma concisa, objetiva e despersonalizada, não estou a descrever algumas das suas dimensões: estou a descrever uma casa, mas não estou a descrever um lar. Césaire cita, no texto mencionado, um trecho dum livro de Aldous Huxley, em que se descreve um leão (juba, garras, etc.), para mostrar como esta abordagem se revela incompleta e insatisfatória: um leão só existe se existirem zebras e antílopes, sem entorno o leão definha, acabando por desaparecer. “O conhecimento científico”, escreveu Césaire, “é um leão sem antílopes e sem zebras”.
Numa entrevista à The Paris Review, Kurt Vonnegut dá o exemplo de um aluno que escreveu uma história em que uma freira ficou com o fio dental preso nos molares e não o conseguia tirar: “Achei isso maravilhoso. A história tratava de questões muito mais importantes do que o fio dental, mas o que mantinha os leitores presos ao texto era a expectativa em relação ao momento em que o fio dental seria finalmente removido. Ninguém conseguia ler essa história sem enfiar um dedo na boca, procurando algo entre os dentes. Assim, deixo-vos este truque admirável. Quando se exclui a intriga, quando se exclui alguém que quer alguma coisa, exclui-se o leitor, o que é algo muito mesquinho.”
A inclusão do leitor é conseguida com um artifício que estabelece uma relação entre a história fruída e o fruidor, através da intriga, que pressupõe na sua estrutura um sentido: a personagem que deseja é uma personagem que se move e este movimento definirá a narrativa, garantindo a participação do leitor (quando lemos uma história, a nossa atividade cerebral é de participante e não de observador distante ou alheado emocionalmente). Um leão descrito sem a zebra não é uma intriga: exclui uma parte essencial do leão e, no caso da ficção, exclui o leitor.
Hitchcock, para mostrar a diferença entre mistério e suspense, em que o primeiro é uma abordagem racional e o segundo emocional, deu o seguinte exemplo: “Quatro pessoas sentadas à volta duma mesa a conversar sobre baseball ou o que for. Cinco minutos disto. Muito aborrecido. De repente, uma bomba explode. As pessoas ficam feitas em bocadinhos. O que terão então os espectadores? Dez segundos de choque. Agora, pegue-se na mesma cena e diga-se ao público que há uma bomba debaixo daquela mesa e que essa bomba explodirá dentro de cinco minutos.” Esta bomba, cuja explosão é anunciada como iminente, não é muito diferente, como artifício, do mais modesto fio dental preso nos dentes de uma freira. Ambos funcionarão relativamente bem: são eles que prendem o leitor, criando a emotividade necessária à imersão, são as zebras e os antílopes que escapam à descrição fria dum leão.