A notícia de que Elon Musk – o patrão da Tesla e, segundo a Forbes, o homem mais rico do mundo – expôs, no passado domingo, dia 1, uma rede de pedofilia controlada por altos funcionários da Organização das Nações Unidas (ONU), tem sido largamente publicada e partilhada por pessoas e páginas ligadas a movimentos negacionistas portugueses no Facebook e Telegram.
Em causa, está um artigo da NewsPunch, assinado por Sean Adl-Tabatabai, que está agora a ser usado para validar a adaptação de uma teoria da conspiração criada pelo movimento norte-americano QAnon, que defende que o ex-Presidente norte-americano Donald Trump está a travar uma guerra secreta contra uma rede global de pedófilos e satânicos, liderada pelos democratas – argumento que, nos últimos meses, começou a fazer escola em Portugal, com governantes e outras personalidades como alvo.
No entanto, o episódio necessita de contexto. Numa mensagem publicada no Twitter, David Beasley, diretor do programa alimentar mundial (PAM) da ONU, desafiou Elon Musk e Jeff Bezos, dois dos homens mais ricos do mundo, entre outros bilionários, a doarem parte das suas fortunas para acabar com a escassez de alimentos a nível global. Elon Musk não deixou Beasley sem resposta. “Se o PAM conseguir descrever exatamente como seis mil milhões de dólares vão resolver a fome mundial, venderei as ações da Tesla agora mesmo”, escreveu o empresário, nascido na África do Sul, naquela rede social.
O responsável do PAM, então, explicou ao patrão da Tesla que “seis mil milhões de dólares não vão resolver a fome no mundo, mas vão evitar a instabilidade geopolítica, a migração em massa e salvar 42 milhões de pessoas à beira da fome”. Musk, porém, não pareceu ficar convencido, exigiu conhecer “as despesas atuais e propostas em detalhe para que as pessoas possam ver exatamente para onde vai o dinheiro” doado à organização, dando como exemplo a notícia, publicada no britânico Express, de eventuais falhas no seio do programa, na sequência de um alegado caso de abusos sexuais contra crianças, que envolveu capacetes azuis colocados em missões no continente africano.
Suspeitas de abusos sexuais em África
O caso remonta a 2017, quando uma investigação da Associated Press revelou cerca de duas mil alegações de abuso e exploração sexual por parte dos capacetes azuis em todo o mundo, durante 12 anos. A reportagem referia que a maior parte das alegações daqueles abusos e daquelas explorações (52) teria ocorrido na República Centro-Africana, em 2016, pelo contingente de capacetes azuis da missão da ONU no país, a MINUSCA, que à época contava com 11 mil efetivos.
Em 2019, a ONU confirmaria, num documento interno, que a investigação ao caso – que custou à organização 431 mil euros – teria culminado num rotundo falhanço, depois de as amostras de ADN que permitiam ligar os abusadores às vítimas se terem estragado devido ao armazenamento inadequado das mesmas. Mais recentemente, em setembro passado, a polémica continuou a ensombrar os capacetes azuis, com a MINUSCA a anunciar que “devido à gravidade” de novas “alegações de abuso sexual” por parte de capacetes azuis gaboneses “não identificados”, tinha tomado a decisão de “repatriar a totalidade do contingente gabonês” constituído por 450 elementos.
NewPuch: um histórico de fake news
A origem da notícia, por si só, aconselha cautela. Fundado em 2014, o NewsPunch (denominado Your News Wire até 2018), com sede em Los Angeles, nos Estados Unidos da América, é um dos mais conhecidos sites de notícias falsas do mundo, tendo conquistado notoriedade (e milhões de seguidores) a espalhar fake news, teorias da conspiração e boatos. Os seus criadores são Sean Adl-Tabatabai e Sinclair Treadway, que, nesse mesmo ano, se tornariam protagonistas do primeiro casamento homossexual realizado no Reino Unido. O autor da notícia, Adl-Tabatabai, 40 anos, filho de pai iraniano e mão inglesa, nasceu e cresceu no norte de Londres. Ex-funcionário da BBC e da MTV, o antigo produtor viraria a sua vida do avesso depois de se encontrar, por diversas ocasiões, com o inglês David Icke, antigo jornalista desportivo da BBC, que abdicou da sua carreira para se dedicar à criação das mais fantásticas teorias da conspiração – chegando mesmo a anunciar-se como “filho de Deus” em 1990. Adl-Tabatabai mudar-se-ia com o seu marido norte-americano para o outro lado do Atlântico, fundando e passando a dirigir este projeto – identificado como a segunda fonte de notícias falsas no Facebook em 2017 e já criticado pela East Stratcom Task Force, uma unidade especial do Serviço Europeu para a Ação Externa da União Europeia que, desde 2015, combate a desinformação e as fake news.
Entre as “notícias” publicadas pelo NewsPunch, destaca-se a teoria da conspiração que ficou conhecida como “Pizzagate”, que defende que uma rede de pedofilia e tráfico de pessoas, controlada por democratas, operava a partir da cave de uma rede de restaurantes italianos; que o tiroteio de Las Vegas (do qual resultaram 59 mortos) e o antentado na Manchester Arena (com 23 vítimas mortais), ambos em 2017, não foram mais que false flags (expressão que designa operações conduzidas por governos, indvidíduos ou outras organizações que aparentam ser realizadas pelo inimigo de modo a se tirarem proveito das consequências); ou ainda boatos de que Bill Gates se recusou a vacinar os seus filhos contra a Covid-19, que Hillary Clinton é a responsável pelo suicídio de Anthony Bourdain ou que Justin Trudeu era descendente de Fidel Castro. Entre muitas outras.
Conclusão
FALSO. Elon Musk mencionou, de facto, através do Twitter, um mediático caso de alegados abusos sexuais por parte de capacetes azuis na República Centro-Africana, mas o patrão da Tesla apenas o fez como referência a uma suposta gravíssima falha da organização no PMA, nunca referindo a existência de uma rede de pedofilia organizada e controlada por altos funcionários da ONU, como diz o NewsPunch – e como tem vindo a ser publicado e partilhado nos grupos negacionistas da pandemia portugueses. Aliás, tem sido a própria organização de que o português António Guterres é secretário-geral que, nos últimos anos, tem vindo a investigar e combater estas situações, como comprova o afastamento do contingente de 450 militares gaboneses da MINUSCA, por suspeitas de novas ocorrências – lamentando-se não se ter ainda chegado a nenhum desfecho. Como habitualmente, o site NewsPunch parte de um acontecimento, de um frase solta, descontextualizando e extrapolando conclusões que vão muito para além da realidade – confiando, como sempre, no papel de quem dissemina a “notícia” pelos quatro cantos do mundo.
FACT CHECK “VERIFICADO”. Conheça os factos, porque é preciso ter VISÃO.