Quando lhe telefonámos a pedir para passarmos o dia com ela em Santo Aleixo da Restauração, a propósito desta edição solidária, Isabel Balancho, 64 anos, convidou-nos imediatamente para almoçar. Saberíamos mais tarde que ficou a meditar na razão do nosso interesse por ela, uma mulher simples, que vive numa aldeia alentejana, encostada à fronteira espanhola. Mas, depois, haveria de mostrar-nos um dossiê, muito bem organizado, com recortes de jornal e fotografias guardadas em micas um monte de documentos que registam pedaços da sua vida a ajudar os outros. “Afinal sempre fiz muita coisa…”
Onze da manhã
Depois de uma viagem longa, debaixo de chuva, chegamos à porta do casal Isabel e Manuel Balancho, que nos recebe como se fossemos visitas assíduas.
Em Santo Aleixo, estão 20 graus e um sol outonal de fazer inveja ao resto do País. Depressa, saímos para a rua, a caminho da associação Sol da Vida, que Isabel criou, assim que deixou a presidência da Junta, que assumiu durante oito anos (de 2001 a 2009). Pelo caminho empedrado, vamos sabendo que Isabel e Manuel nasceram os dois ali. Aos 21 anos, ela largou as amarras e partiu para Angola, para se juntar ao marido, que trabalhava na Diamang. A seguir ao 25 de Abril de 1974, regressaram como retornados, sem grandes recursos. Mas nem aqueceram o lugar, no Alentejo acabariam por tentar a sorte na Suíça. É aí, onde viveram 25 anos, que Isabel começa a sua “carreira”.
Meio-dia
Entramos na casa que antes fora dos seus pais e agora serve de sede à associação. No rés do chão, à esquerda, há uma sala grande na qual 13 mulheres recebem formação em pintura, durante todo o dia. Nas paredes veem-se trabalhos em Arraiolos, saídos de outros ensinamentos manuais. No andar de cima, fica o escritório daquela que todos tratam, carinhosamente, por Isabelinha. “Se não fosse pelas formações que aqui damos, as mulheres nem saíam de casa, enquanto os homens passam os dias na taberna”, diz, preocupada com a solidão e o desemprego que afeta grande parte dos cerca de 800 habitantes da sua terra.
Isabel evita a luz que teima em entrar pela ampla janela. Tem graves problemas nos olhos, que a obrigam a alternar entre uns “óculos de lupa” e outros escuros. Mas não a impedem de levar avante os seus planos, apoiando todos aqueles que lhe batem à porta.
Uma da tarde
O telemóvel toca. É Manuel, a chamar-nos para almoçar. Mantém-se à margem desta “hiperatividade” feminina, mas é ele quem garante que um belo borrego, acompanhado de batatas cozidas com alecrim, chegue à nossa mesa acabadinho de cozinhar.
Nessa altura, vemos as fotografias dos dois filhos: Joca, de 40 anos, a trabalhar num banco, em Beja; e Ana, 30, que vive em Lisboa. E os tais dossiês que foi recuperar, depois do nosso telefonema. Está lá o agradecimento pelos 9 mil francos suíços que enviou para criar um lar de idosos, as notícias com as festas para angariar fundos no casino de Rolle, as boas festas de Jorge Sampaio, e uma frase reveladora, escrita pelo grupo de jovens de Santo Aleixo: “Fazes bem e não olhas a quem.”
Ao bater das duas
Deixa a sua casa, com uma tacinha de arroz doce na mão, que sobrou do almoço. Ainda nem deu dez passos e já está a parar para dá-la a Manelinho, ou seja Manel Mira, de 66 anos, com poucos dentes na boca. Foi motorista de Isabel, nos tempos da Junta, mas agora vive mal, com os quatrocentos e tal euros de reforma. “Eu não vou ao médico, é a Dona Isabel que me explica como tomar os comprimidos para a asma”, conta, antes de se sentar no banco do jardim a digerir o vinho e a dormitar sob o sol quente. A ex-autarca continua o seu passeio, a pé, até à associação, com várias paragens, sempre que se cruza com alguém. Sabe as histórias todas de cor, pergunta como têm passado. Preocupa-se. É assim desde o tempo em que estava na Suíça e quis dar a mão a outros emigrantes, para que não se sentissem pequeninos num país que não era o deles. “Aqui sempre fui padre, assistente social, amiga…”
Meia hora depois
Depois de uma paragem em cada um dos cinco cafés de Santo Aleixo, Isabel apressa-se a espreitar o curso de reciclagem que acolhe três meninas da aldeia. “Os mais jovens andam todos aqui, em formação”, avisa. Vão recortando cartão para as bases dos cestos que produzem com papel de listas telefónicas. Márcia Machado, 18 anos, já acabou o secundário, na escola profissional de Moura, mas nunca trabalhou. Ao menos assim está ocupada e ainda recebe algum (subsídio de refeição).
As outras colegas, Daniela Guerreiro, 24, e Paula Susana, 25, só fizeram um estágio do Instituto de Formação Profissional na Sol da Vida. “Esta associação foi a que deu mais formação em todo o distrito de Beja.”
Quando acabarem estes trabalhos manuais, irão vendê-los para ajudar a associação.
Estas três jovens também fazem parte do grupo de teatro (coordenado por Isabel Balancho, pois claro), que organiza espetáculos para angariação de fundos. “Já conseguimos comprar seis cadeiras de rodas e um andarilho, que emprestamos a quem precisa”, contabiliza.
São três
É numa dessas cadeiras que encontramos Xavier José, 30 anos, depois de chegarmos ao outro extremo da aldeia, a uma casa modesta já no montado. Ele está sentado na sala/cozinha, em frente à televisão, ligada na novela da tarde da SIC, mas apostamos que não está a prestar-lhe atenção. Percebe-se, apesar do estado avançado do Síndrome de Keans-Sayre, uma doença genética degenerativa, que fica contente por ver Isabel. Não admira: foi ela que organizou o espetáculo ‘Vamos Ajudar o Xavier’ – com as receitas, a mãe levou-o a Cuba. Não contente com isso, pegou na papelada toda com o diagnóstico e enviou-a para um médico amigo na Suíça. “Queremos o melhor para o Xavier.” É por isso que, antes do final do dia, não descansou enquanto não garantiu que ele iria, de graça, para uma clínica em Moura, com fisioterapia. Naquela casa, onde há mais três filhos e onde só entra o dinheiro do pai, que trabalha no campo, tem de se esticar muito o orçamento para fazer face ao grave problema do mais velho.
Encontro às 15 e 30
São casos como este que desgastam Isabelinha. Por isso, vira-se do avesso para conseguir pequenas coisas, como muletas – “Fazem tanta falta e não há nenhum sítio para alugá-las, em Moura” – ou fraldas. Pelo meio, vai tentando desbloquear as burocracias com telefonemas a amigos influentes.
Agustina, 60 anos, franzina, cabelo curto, aparece em casa de Isabel toda vestida de preto, com um saco de papéis na mão. Anda a tratar de conseguir uma pensão por invalidez e quer ajuda para ir à Segurança Social, a Beja. O encontro com a ex-autarca fica marcado para o dia seguinte. Irão no carro da filha de Agustina, que vive em Espanha. “Ela ajuda muito o povo”, garante.
Mas há situações que lhe escapam e isso deixa-a de rastos: “Ontem soube de muitos casos a que não vou conseguir deitar a mão. Cheguei a casa muito triste e chorosa.”
Cantar às quatro e meia
Valem-lhe os momentos em que ensaia o coro de cantares alentejanos, só de mulheres, vai para seis anos. A ideia surgiu depois de se encontrarem nas Novas Oportunidades, onde conseguiram passar da quarta classe para o 12.º ano. A turma organizou um piquenique na ermida, que acabou em cantoria. A maioria já passara a barreira dos 60 e as oportunidades não eram mesmo para velhas. “Com a nossa idade quem nos quer? Aqui não há nada”, desabafam. Se não fossem os ensaios, passavam-se semanas em que não se viam, metidas em casa. Agora, fardadas de camisa aos quadradinhos e lenço vermelho enrolado ao pescoço, até vão a festas fora da terra a próxima será no dia 8, na Amareleja. As letras, que cantam, enquanto se balançam de um lado para outro, com as mãos cruzadas abaixo da barriga, são escritas por Isabel Balancho. Por quem mais poderiam ser? “Para esquecer as suas mágoas, levava os dias cantando…”