Em janeiro deste ano, Gonçalo Lobo foi eleito para o lugar que ocupava a carismática Margarida Martins. Conseguiu-se uma transição suave. O psicólogo, de 32 anos, já trabalhava na Abraço desde 2007. Para ele, as pessoas também são o mais importante.
É presidente da Abraço há dez meses. Que balanço faz?
Bastante positivo, tanto em termos internos como da imagem para fora. Ainda estamos a arrumar a casa, mas já não temos ordenados em atraso. E, segundo a Deco Proteste, a Abraço detém 85% do mercado do VIH. Para o bem e para o mal. O próprio laço, que é internacional [aponta para o pin que traz na camisa], está associado à Abraço. A Margarida [Martins], com o seu marketing feroz, conseguiu consolidar o nosso nome e a associação dele com o VIH.
A Abraço começou com voluntários. Hoje, a ligação à sociedade civil ainda faz sentido?
Nunca vamos deixar de ser sociedade civil, enquanto terceiro setor. Somos porta-vozes do que se passa na sociedade. E o voluntariado continua a fazer sentido.
O que pode fazer um voluntário na Abraço?
Pode servir refeições na nossa cantina ou fazer os cabazes do Banco Alimentar, por exemplo. Se for técnico oficial de contas ou psicólogo, pode dispensar umas horas para trabalhar connosco. Mas tem de ser fixo. É um compromisso que assume, senão desajuda.
Disse que são porta-vozes da sociedade. Não são também ativistas?
Temos uma importante vertente de ativismo, sim. Neste momento, estamos concentrados no acesso à medicação – no mês passado, reportámos dois casos, em crianças. O VIH implica 95% de adesão, ou seja, durante uma semana, só se pode falhar uma toma. Trabalho isto com os doentes e vem o Estado e diz: não há medicação. Não pode ser!
O que pensa da transferência dos doentes dos hospitais para os centros de saúde?
Não faz sentido. Um clínico geral não tem competências para mudar uma terapêutica – a gestão descentralizada ia criar um caos ainda maior. Há, ainda, a questão social. Se tenho doentes que vêm da Madeira e dos Açores para o Continente, ou do Alentejo para Lisboa, só para não se saber que estão em tratamento, não acredito que procurem uma estrutura de maior proximidade. Vêm cá duas vezes por ano e o envio da medicação é a nosso cargo. Também temos doentes que emigram ou regressam aos seus países, aos quais asseguramos a medicação no período de transição.
E o Estado?
O que anda a fazer o Estado? Muito pouco. Está a acabar o ano e nem tivemos acesso ao relatório da infeção de 2013. Os dados existem, as notificações são obrigatórias, mas só temos os números de 2012.
Queixou-se, recentemente, de que o Estado se limita a dar preservativos e geles. Ainda é assim?
O Estado nem os dá diretamente. Nós solicitamos os preservativos ao Programa [de Prevenção e Controlo da Infeção VIH/sida] e fazemos a distribuição. E, há pouco tempo, até se falou em rutura de stock.
O panorama não é animador.
Não é nada animador, não. Neste momento, não há verbas alocadas para o VIH. Nem sequer está a funcionar o ADIS [programa criado, em 2002, com o objetivo de financiar projetos e ações no âmbito da formação, apoio social e prevenção da infeção VIH/Sida, desenvolvidos por organizações da sociedade civil]. A Direção-Geral de Saúde só abriu um concurso para os testes rápidos [de diagnóstico]. E nós avançámos com uma unidade móvel em Aveiro porque em Lisboa tal já se pode fazer em vários locais, embora haja carência. Quando estivemos na Junta de Freguesia de S. Domingos de Benfica, por exemplo, houve sempre fila.
Mesmo sem dados oficiais, consegue dizer-nos como estamos de infeção?
Consigo fazer extrapolações dos anos anteriores. Temos, com certeza, mais mil novos casos por ano, porque não houve, em termos de intervenção, qualquer alteração.
Nem sequer a nível da prevenção?
A prevenção do VIH não é apetecível, porque demora décadas. Implica mudança de comportamento, de mentalidades… Como não dá resultados imediatos, não dá votos. Mas isto acontece com qualquer doença. Em Portugal, a prevenção escreve-se com pê minúsculo.
E junto dos jovens?
Há 18 ou 19 anos que um colaborador nosso, o Sérgio Luís, faz ações de sensibilização em escolas. É o trabalho que a Abraço desenvolve de forma mais contínua e regular. No Norte, temos a enfermeira Carla Pereira a fazer o mesmo. E organizamos ações pontuais, por exemplo nos festivais de verão, porque estão associados a comportamentos de risco.
Os jovens ainda têm dificuldade em falar de preservativos?
As raparigas não conseguem verbalizar “sem preservativo, não” porque não querem que deixem de gostar delas. Nos rapazes, está muito ligado a uma questão de masculinidade, de virilidade.
Devemos estar preocupados?
Sim, porque continua a haver jovens sem informação suficiente sobre o VIH. E quem sabe nem sempre atua em conformidade.
A infeção por VIH é cada vez mais encarada como uma doença crónica. Isso é bom?
Tem aspetos negativos e positivos. O VIH é muito desestruturante. Quando alguém sabe que está infetado, diz “eu sou seropositivo”, quando, no caso do cancro, diz “eu tenho”. Do “ser” para o “ter” há uma diferença qualitativa. É quase como se o VIH fosse colocado em primeiro plano. No Brasil, fala-se em “pessoas que vivem com” o VIH, o que faz mais sentido.
Qual é o desafio atual da Abraço?
Estabilidade financeira. Se a tivermos, conseguimos fazer coisas mais engraçadas e expandimos o nome lá fora. Somos das poucas associações em que a pessoa entra e temos sobre ela uma visão holística. Oferecemos tratamento dentário somos os únicos e os doentes vêm encaminhados do Hospital de Santa Maria, de mapa para aqui chegarem e tudo! e apoio social. Temos apartamentos de acolhimento temporário, unidade residencial, apoio domiciliário, refeitório social, acompanhamento e avaliação psicológica, centro de convívio, ATL para as crianças, consultas de nutrição e apoio jurídico.
Como é que as empresas podem apoiar?
Financeiramente ou na reabilitação dos edifícios. É do que precisamos mais, neste momento. No chão da sede, já há verdadeiras crateras.
E as pessoas, em geral?
Podem inscrever-se enquanto sócias da Abraço. Antes, os nossos sócios pagavam 66 euros por ano, o que, hoje, é financeiramente muito. Agora, pagam entre 12 e 114 euros, podem ter descontos nos nossos parceiros e têm acesso ao tratamento dentário, à cantina social e às consultas de psicologia e de nutrição, independentemente de viverem com o VIH ou não. Já temos pessoas que não são doentes a procurarem-nos, sobretudo para consultas de psicologia. É uma valorização do nosso trabalho.