As lembranças do primeiro dia já são difusas. Fernando de Pádua não se recorda de como chegou a São Pedro do Estoril, se de comboio, se de camioneta. Mas o cardiologista e professor catedrático, hoje com 86 anos, não se esquece de que era na camarata, sem beliches, que mais se divertia com as batalhas de almofadas, precisamente no início da “guerra-relâmpago” de Hitler (Blitzkrieg, em 1939). “Ficava a olhar para o mar com medo de que viesse um barco alemão e nos levasse.” Ou, à noite, quando as luzes se apagavam, das paredes iluminadas pelos faróis dos automóveis que rolavam na Avenida Marginal.
As idas à “praia privativa” da Colónia Balnear O Século ficaram marcadas pela genica do banheiro. “Depois de alinhados, apertávamos o nariz e ele mergulhava-nos.” Só mais tarde, na Mocidade Portuguesa, aprenderia a nadar. O regresso acontecia já perto da hora do almoço.
“Abusavam do feijão-frade, era com atum, com peixe frito… Parecia a engorda.” Ainda hoje o médico não morre de amores pela leguminosa.
Passaram 75 anos desde que Fernando de Pádua ali fez férias, juntamente com o irmão mais velho e a irmã caçula. Homem dedicado à saúde do coração, viu o seu estremecer com um fugaz namoro de verão. “Lembro-me de uma mocinha chamada Margarida…
No fim das férias, descobri onde morava, em Lisboa, e plantei-me por uns instantes à sua porta.” Não chegou a tocar a campainha. Ainda agora, sempre que passa na rua (na zona do Rato) questiona-se sobre como teria sido a sua vida se o tivesse feito.
Agora como dantes
Foi graças a uma consulta de oftalmologia durante as férias na colónia que Margarida Martins descobriu a sua miopia. A presidente da Abraço e candidata à Junta de Freguesia de Arroios, a uns dias de fazer 60 anos, recorda a sensação de a praia de São Pedro do Estoril lhe parecer enorme. Andou por lá entre os seis e os dez anos, e as visitas da mãe, ao domingo, brincar à macaca, à apanhada e ao elástico ou a animação, na hora de deitar, são memórias ainda muito vivas. “Lembro-me de ser feliz.” Episódios intensos irão também marcar a vida das 360 crianças que vão “acampar” n’O Século até a o fim de agosto, em cinco turnos.
Após um período de graves problemas financeiros, a colónia balnear reabriu em pleno, recebendo meninos e meninas provenientes de famílias carenciadas, a morar em em instituições ou sinalizadas pela Comissão Nacional de Proteção das Crianças e Jovens em Risco. Também funciona como “colónia aberta” para crianças de todos os estratos sociais mas, neste caso, não incluiu as dormidas e implica o pagamento de uma verba que depende do rendimento familiar.
Nos verões de 2010 e 2011, a Fundação O Século apenas organizou “colónias abertas”. E, no ano passado, só houve verba para levar à praia os 160 meninos da creche e pré-escolar, dos ATL’s e lares da fundação.
A realização da colónia foi posta em causa há três anos, quando a Câmara de Lisboa interrompeu o pagamento dos 2 milhões e 600 mil euros anuais da indemnização acordada após o encerramento da Feira Popular de Lisboa (em 2003), a principal fonte de financiamento da obra social.
Fundada em 1927, por João Pereira da Rosa, diretor do jornal O Século, a colónia já proporcionou uma experiência diferente a mais de 200 mil crianças, entre os 6 e os 12 anos. Em 86 anos, a sua atividade social só tinha sido interrompida uma única vez, em 1974, durante o PREC.
Peixe não puxa carroça
No início do primeiro turno de onze dias, um simples alguidar verde ajudou monitores e crianças a travarem conhecimento, quebrando a ansiedade e o desconforto. No interior, uma receita infalível para bolas de sabão: um litro e meio de água quente, dois dedos de detergente da louça concentrado e seis colheres de sopa de açúcar.
Nessa manhã sufocante, com os termómetros nos 35 graus, os miúdos chegaram a conta-gotas, arrastando malas de viagem.
“É saudável eles terem noção do receio, de que vão ter novas regras e lidar com desconhecidos”, explica Mónica Meireles, coordenadora da colónia.
De calções e T-shirt vermelhos, Diogo, 11 anos, despediu-se dos pais. Com ambos desempregados, o apoio da Junta de Freguesia de Mem Martins foi imprescindível. “É a única forma de o meu filho ir à praia”, explica a mãe, Filomena Pires.
Além dos mergulhos no mar, Paula e José Paulino, também querem que Miguel, 9 anos, cresça um pouco. “Está muito apegado a nós”, justificam estes comerciantes do concelho de Sintra. Os 50 euros que pagam face aos quase 200 pedidos noutros locais (sem comida, nem alojamento) são uma benesse.
À mesma hora, já os grupos de crianças autointitulados As Rebeldes e os Black & Red, que chegaram na véspera, estão no areal.
Com a ajuda dos monitores Pedro e Alice, esticam toalhas, tiram chinelos, instalam chapéus de sol. Alinhados em comboio, espalham creme nas costas uns dos outros. Em manhã de maré baixa, apesar de a água estar um pouco fria, “a sensação é boa”, descreve Rodrigo, 12 anos.
Enérgica e com espírito de líder, Marta organiza a fila para o refeitório. A frequentar o 4.º ano do curso de Terapia da Fala, a monitora, de 22 anos, ensina-lhes uma canção: Eu tenho fome/Eu quero comer/Mas se o almoço é peixe frito/Com fome eu estou/Com fome eu fico. Até ao final de agosto, nos três turnos que Marta fará, muitas vezes se ouvirão estes versos. Naquele dia, nem de propósito, espera-os uma sopa de abóbora com hortelã, antes dos filetes de peixe com arroz de tomate.
O empresário Paulo Paiva Santos
ALTRUÍSMO, PRECISA-SE
Foi com orgulho e satisfação que Paulo Paiva dos Santos assistiu ao primeiro dia de férias, na colónia. No verão passado, o empresário farmacêutico, de 51 anos, fundador das empresas Generis e Wynn, fez um donativo pessoal de 100 mil euros, numa tentativa de colmatar a falta de verba.
Sem nenhuma ligação afetiva à colónia, bastou-lhe ler uma notícia para se emocionar, indignar e agir. Quis dar a cara para mostrar como é possível ajudar, quer a nível individual quer empresarial.
“Os empresários ainda são muito egoístas”, lamenta.