Em certo sentido, a casa é o espelho de Maria Teresa Horta. À entrada, no pequeno apartamento na Avenida Defensores de Chaves, em Lisboa, estão os poetas, para que o visitante perceba, desde logo, onde está. «Não posso viver sem a poesia na minha vida», diz-nos a jornalista e escritora, autora de livros como Minha Senhora de Mim (1967) e As Luzes de Leonor (2011). As restantes divisões estão repletas de pormenores, livros, jornais, fotografias, gavetas e papéis, memórias de uma vida cheia que Maria Teresa – uma das mulheres-coragem que, em 1972, ousaram desafiar o regime com uma obra epistolar, Novas Cartas Portuguesas, sobre a liberdade e a condição feminina – desfia nesta entrevista à VISÃO História. Na qual também confidencia que ser desobediente sempre foi a sua maior qualidade.
(Entrevista publicada na VISÃO História nº75 de fevereiro-março 2023)
Da ditadura até ao presente, sempre a trataram como a feminista de serviço. Porque é que nunca recusou esse papel?
Sim, é verdade, talvez desde os meus 20 e tal anos. Não posso dizer que não, não há muitas feministas… No tempo do fascismo, era perigoso falar; ser feminista, só por si, também era perigoso. A verdade é que, por duas vezes, fui presa apenas por ser feminista. Quando eles vinham, perguntava: “Então, e o que é que eu fiz agora? São capazes de me dizer?» Não se podia prender ninguém durante a noite, mas a PIDE batia à porta mal raiava a aurora. E eu sempre lhes disse: «Vocês têm muito maus hábitos, escutam, entram pela casa das pessoas adentro e, desde logo, tentam estrangulá-las!» Não ficava assustada, eles ficavam danados e possessos, mas a verdade é que dava um certo resultado.
Mas nessa altura nem sequer tinha começado a publicar…
Não, mas dizia coisas, todos nós, escritores, fazíamos e dizíamos coisas… A PIDE achava que nos mantinha as mãos atadas, mas nós não estávamos de mãos atadas, ora! E, depois, no meu caso, também tem a ver com uma certa imagem que se criou em torno de mim. E isso não os inibia. Desde cedo, logo desde o Filipa [Liceu D. Filipa de Lencastre, que Maria Teresa Horta frequentou], comecei a pensar em fazer, ser… diferente. Não queria ser aquilo que o resto da minha família era, sobretudo não queria ser como as mulheres da minha família. Era muito novinha, não sabia bem o que queria da vida, mas sabia que não era aquilo que queria.
Sobretudo, não queria que o seu pai, o médico Jorge Horta, decidisse por si.
Pois, na realidade o que eu não queria mesmo era ser exatamente como as mulheres da minha família… Casavam-se, eram criadas naquela educação de acordo com a qual as mulheres tinham o dever de obedecer. Ser mãe e ser mulher, ou melhor, ser esposa (como eles diziam), eram os papéis principais. E depois, muitas outras coisas por aí adiante, menos… ser escritora. Ser escritora dava muito mau aspeto, não era bem visto.
E tomou essas opções em confronto com o seu pai, um homem muito conservador.
O meu pai era um homem muito inteligente, muito culto, grande médico e muito bom professor, mas era também uma pessoa muito severa. Não queria que as mulheres lessem, o que desde logo constituía um problema… Por isso, eu sempre constituí um problema. Fui um problema para a minha família desde muito cedo: eu era sempre qualquer coisa que não devia ser, queria sempre qualquer coisa que não devia querer. A minha avó, que foi a pessoa mais espantosa da minha vida…
A sua avó Camila, que quando era pequenina a levava às reuniões das sufragistas?
Sim, a mãe do meu pai, a minha avó Camila foi a pessoa que me criou, foi a pessoa mais importante da minha vida. Éramos as duas unha com carne. Só muito mais tarde, quando voltei a encontrar a Maria Lamas, é que percebi que a tinha conhecido nessas reuniões das sufragistas, na Casa-Jardim, em Benfica. Ela lembrava-se muito bem de mim e eu lembrava-me de que ela tinha um casaco castanho e me dava rebuçados durante as reuniões das sufragistas [risos].
Do que se recorda dessas reuniões?
Eu era muito pequenina e adorava ir com a minha avó. Elas falavam do que queriam e eu, claro, não percebia nada do que conversavam. Mas gostava muito de ir: porque elas eram encantadoras comigo, levavam-me rebuçados, brinquedos e livrinhos da coleção Joaninha. Eram muito divertidas, riam-se imenso e falavam de tudo.
Estavam muito à frente para o Portugal daquela época?
Daquela?! Desta! Aí é que está, elas eram incríveis. Agora é que o percebo, evidentemente, mas elas eram incríveis porque falavam de tudo e, ao mesmo tempo, conseguiam divertir-se. Hoje, olho para essas reuniões e penso como é que aquelas mulheres, criadas como elas foram criadas, conseguiram ser assim. Garanto-lhe: para uma mulher ser feminista naquela época era preciso ser uma mulher com muita coragem.
De que maneira essa experiência influenciou, depois, a sua vida e todas as opções que veio a tomar?
Acho que sou feminista por causa da minha avó. Foi ela que me abriu os olhos para determinado tipo de coisas. Conto-lhe apenas um episódio (ponha-se naquela época): quando a minha mãe fez a malinha e se foi embora de casa, abandonando o meu pai, passadas 24 horas o meu pai tirou a fotografia dela do quarto e tudo aquilo que lhe pertencia.
A minha avó voltou a pôr tudo no sítio, entrou pelo escritório adentro, fechou a porta e, de repente, só a ouvi dizer: «Eu não admito que tu, Jorge, fales mal da Carlotinha à minha frente!» Acho isto espantoso, porque ela era mãe dele e, mesmo assim, defendia-a. A minha avó nunca deixou que dissessem mal da minha mãe lá em casa. Reagi muito mal à saída da minha mãe, não dizia nada, deixei de comer… E, pouco depois, quando a minha avó morreu, tudo ficou ainda pior. Já nem a minha avó me defendia do que se estava a passar na minha vida… Tudo se virou contra mim. Andava sempre com ela, eu atrás dela ou ela atrás de mim. Ainda hoje sinto que fazíamos uma pessoa só, como se houvesse duas idades nela e eu fosse aquela que tinha a idade mais baixa.
Que coisa tão bonita e comovente.
É, ela contava-me coisas que mais ninguém conta a crianças daquela idade. Nunca dizia que eu não tinha idade para ouvir, dizia sempre: «Se calhar, não vais perceber, mas eu conto-te.» Continua a ser a pessoa mais importante da vida, tenho todos os seus textos (foi a primeira mulher a escrever num jornal) e nunca vou para a cama sem dar um beijo na fotografia que ali tenho dela. Não faço ideia do que seria hoje se ela não tivesse existido na minha vida.
E quando é que decidiu ser jornalista, uma profissão que também era considerada pouco apropriada para mulheres?
Sempre quis ser jornalista, desde sempre. O meu pai lia muitos jornais e eu sempre tive esse imaginário dos jornais dentro de mim. Os jornais eram aquilo que trazia as notícias do mundo, que nada tinham que ver com aquela coisa horrível que era a nossa casa. Imagine: o meu pai todos os dias comprava O Século, o Diário de Lisboa e o Diário Popular. Almoçávamos todos juntos, mas os jornais só ficavam do lado dele. Só ele os podia ler!
Como é que começou a trabalhar nos jornais, como é que chegou a esse mundo?
Eu sabia que ficava mal ser jornalista, mas era jornalista que eu queria ser. O meu pai dizia que eu era doida, que não regulava bem da cabeça. E a minha madrasta ainda ajudava mais: dizia que eu só queria coisas que não devia querer. Um dia, fui à Baixa e fui direitinha ao República, onde expliquei que queria ser jornalista e perguntei se não me podiam ensinar. Eles ainda me perguntaram: «Então, e o seu pai não se importa?» Ao que eu repliquei: «Não, ele vai ficar muito satisfeito.» [risos]
Portanto, foi no República que aprendeu o ofício?
Sim, eles eram poucos e, por isso, precisavam de mim. Como também não tinham dinheiro, eu trabalhava de graça. Ensinaram-me imenso, ensinaram-me tudo o que sei. Tinha para aí 17 anos… Eram muito poucos, mas havia um deles que me dizia: «Eu gosto dos seus textos, mas os seus textos precisam de ter pontuação. Tal como estão, os seus textos são como uma mulher muito bem vestida sem sapatos.» Adoro esta comparação! Acho uma coisa lindíssima porque, na realidade, eu sempre preferi ter um texto sem pontuação, nunca quis parecer uma mulher muito bem vestida com sapatos. [risos]
Mesmo quando sai do Diário de Lisboa para A Capital, ainda eram muito poucas as mulheres que trabalhavam nas redações…
Havia as revistas femininas, mas, fora isso, havia muito poucas. Nem meia dúzia. Mas sempre tive muitos amigos nos jornais. O Batista Bastos, por exemplo, foi uma pessoa muito importante na minha vida, era um indivíduo tresloucado da cabeça, mas era muito humano.
Muitos outros escritores, como José Cardoso Pires, também a adoravam.
O Zé [Cardoso Pires] era muito meu amigo e eu também era muito amiga dele. Era muito aborrecido porque, de vez em quando, queria que eu fosse almoçar com ele e obrigava-me a beber. Ora, eu sou abstémia, nasci assim, não consigo beber álcool, fico maldisposta, agoniada… E ele, mesmo sabendo disto, insistia. Ele tinha um feitio muito difícil, mas ao mesmo era muito generoso. Foi o primeiro escritor que vi escrever, sentado ao meu lado, a escrever. É tão interessante…
Era muito exigente, porventura demasiado…
Era um homem muito, muito difícil. Era um homem que exigia muito de si e muito dos outros também. E depois estava à espera que tudo fosse ótimo. E que todos obedecessem, nomeadamente as mulheres. Se não obedeciam era porque não obedeciam, se obedeciam era porque eram aborrecidas…
Tinha um lado conservador?
Muito, um lado conservador muito grande. No fundo, acho que todos esses homens daquela altura estavam muito divididos em relação à posição das mulheres. A tradição, de alguma maneira, convinha-lhes.
Quando falavam disso, ele não se zangava consigo?
Não, e aliás falávamos imenso sobre isto. Mas ele achava que eu era doida. E, muitas vezes, também me dizia que o meu grande defeito era ser desobediente. Ao que eu sempre repliquei: «Ora, eu acho que isso é a minha grande qualidade, desde pequenina!»
Hoje, quando olha para trás, acha que é por ter sido educada num ambiente muito católico, rígido, conservador que se tornou tão desobediente?
Sim, é provável que também tenha tido influência. Mas foi sobretudo por causa da minha avó Camila. No fundo, ela queria que eu fosse diferente.
Quando se aproximou do Partido Comunista, também sentiu essa dualidade no que diz respeito à forma como viam o papel da mulher?
Sim, em muitos deles. Eles preferiam… Digamos de outra maneira: não eram capazes de dizer nem de o reconhecer perante os outros.
Na Soeiro Pereira Gomes também era a feminista de serviço?
Não, aí eu era a malvista de serviço [risos]. Um dia, a [jornalista e hoje investigadora] Helena Neves foi com um camarada à revista Mulheres, de que eu era chefe de redação, para me dizer que o partido ia acabar com a revista. Levantei-me e pedi licença para passar. Perguntaram-me aonde é que eu ia e eu respondi: «Vou ao Sindicato dos Jornalistas. Estão a pôr-me na rua, é para estas ocasiões que serve um sindicato.» Ficaram estarrecidos, varados.
A propósito dos 50 anos da publicação, voltou a falar-se muito de Novas Cartas Portuguesas. Hoje, vê-o como um livro de luta pela liberdade ou pela igualdade das mulheres?
As duas coisas, sem dúvidas.
Em certo sentido, não é também um livro que resulta de um impulso?
Sim, completamente. Todas as semanas almoçava com a Isabel [Barreno] e com a Fátima [que assinava como Maria Velho da Costa], que era como nós lhe chamávamos. E houve um dia que cheguei lá num estado comatoso, tinham-me batido e eu estava toda desfeita. E, vai daí, a Fátima é que se lembrou de sermos as três a escrever. No almoço seguinte, a Isabel, que inicialmente até tinha ficado aborrecida com a ideia porque tinha começa a escrever A Morte da Mãe e não queria interromper, já tinha o primeiro texto para nos dar a ler.
Ainda mantém aquela sensação de que estavam a fazer algo de muito diferente do que o habitual?
Quando começámos a escrever, foi do princípio ao fim. Foi uma coisa muito bonita, foi das coisas mais belas da minha vida. Porque não é só literatura. Nas Novas Cartas Portuguesas, há uma conivência muito grande, um trabalho de luta. Isto não é apenas a obra literária.É um trabalho de luta – e nós conseguimos fazer desse trabalho de luta uma obra literária.
Por ser uma obra coletiva?
Sim, por sermos as três. Nunca mais ninguém fez uma coisa assim.
Foi também resultado de uma grande cumplicidade?
Mais: de uma grande cumplicidade, mas até de uma grande conivência, de uma grande generosidade. Houve, inclusivamente, uma grande cumplicidade política. Veja: apanhei uma grande tareia e elas, por solidariedade, escrevem isto comigo.
Como se a dor passasse para as outras, como que por osmose?
Sim, é isso, elas foram coniventes comigo. Escrever isto, naquela altura, era perigoso. E nós sabíamos isso. Éramos jovens, mas não éramos ingénuas. Se escrevêssemos isto agora, tenho a certeza absoluta de que já não era perigoso. Embora continue a fazer todo o sentido…
O que não quer dizer que não haja muito por fazer…
Ai, claro que há tanto por fazer, ainda mal se começou [risos].
O livro e o processo
Em abril de 1972, três escritoras, nascidas no final dos anos 30, denunciavam o Estado Novo e tudo o que este interditava. O livro levou nove meses a ser gerado, chamou-se Novas Cartas Portuguesas e as autoras – Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa – ficaram conhecidas como as Três Marias por causa do processo judicial que a ditadura lhes pôs. Foram acusadas de atentar contra a moral vigente: «Conteúdo insanavelmente pornográfico». O julgamento teve início a 25 de outubro de 1973, mas por causa dos sucessivos adiamentos, a leitura da sentença acabou por sair já depois do 25 de Abril. A 7 de maio de 1974, o jovem juíz Lopes Cardoso absolveu-as: «O livro não é pornográfico nem imoral. Pelo contrário: é obra de arte, de elevado nível, na sequência de outras obras de arte que as autoras já produziram.»