O estranho caso do ouro desaparecido na Justiça

Foto: Luís Barra

O estranho caso do ouro desaparecido na Justiça

Por trás da máscara branca, que lhe protege a identidade, o rosto de Carlos F. denuncia a “dor” e a “revolta” acumuladas na última década. A história de vida deste ourives, de 57 anos, atravessa o período que passou na cadeia, mas conta também o “roubo” de que diz ter sido alvo, centenas de milhares de euros em ouro que “desapareceram”, acusa, nos corredores da Justiça portuguesa; uma versão que tribunal e polícia têm vindo a rejeitar. O tesouro, porém, não se consegue encontrar em lado nenhum.

Recuemos ao início. Carlos F. nasceu numa família ligada à ourivesaria, não quis contrariar o destino, e tornou-se, ainda na juventude, comerciante e industrial do setor. Naquela época, o negócio seguia “de vento em popa”, recorda. Nas lojas de Leiria e de Fátima, comprava e vendia ouro e prata, ofício que sempre lhe deu “muito trabalho”, embora a vida corresse “muito bem”, admite.

Uma investigação da PSP de Leiria veio virar-lhe o mundo do avesso. Carlos F. diz-se “perseguido”, mas, após dois anos de trabalho policial, que incluiu vigilâncias, escutas, declarações de testemunhas, o caso ganhou pernas para andar. No dia 21 de outubro de 2011, a polícia entrou-lhe pelas casas e lojas, as contas foram todas arrestadas, os automóveis apreendidos. Os objetos que antes figuravam nas vitrinas, passaram para as mãos das autoridades. No âmbito da operação, a PSP recolheu nove quilos de ouro (que seria guardado num cofre da Caixa Geral de Depósitos), por ordem do tribunal. Na altura, o metal estava avaliado em cerca de €440 mil.

Carlos F. está a tentar “recuperar a vida”, diz, depois de quatro anos atrás das grades. Os bens que lhe pertenciam evaporaram-se?

Carlos F. seria acusado de adquirir peças de prata e ouro obtidas através de furtos a residências. A investigação concluiu que, entre 2009 e 2011, o ourives adquiriu dezenas de quilos de metais preciosos dessa maneira, conseguindo, assim, “elevados proventos financeiros”. Seis pessoas foram identificadas como “os vendedores”, descritas como “toxicodependentes”, que, por vezes, esvaziavam as moradas indicadas pelo próprio ourives. Carlos F. ocultaria as compras e os nomes dos vendedores nos mapas enviados periodicamente à Polícia Judiciária.

A PSP não tinha dúvidas: o suspeito fundia os produtos roubados, no forno da família, fazendo, daquelas peças, barras de ouro ou artefactos de ourivesaria e prata, como anéis, fios e brincos… Com o lucro, reinvestia em novas peças, joias, objetos de arte ou de coleção e ainda antiguidades, faqueiros, castiçais, moedas. O dinheiro vivo era guardado no banco ou em casa.

Carlo F. continua a declarar-se “inocente” até hoje, nega saber de “peças roubadas”, rejeita “má-fé” nos negócios, garante que mapas e contas “estavam em ordem”. As explicações não convenceram o Tribunal de Leiria, que acabou por condená-lo a seis anos de prisão por recetação, branqueamento e fraude fiscal. Esgotados todos os recursos, Carlos F. morou atrás das grades, nas cadeias de Santa Cruz do Bispo e Covilhã, entre 2018 e 2022.

Caça ao tesouro

O ourives ficou preso quatro anos, perdeu tudo o que o tribunal deu como provado ter origem na atividade ilícita, como €80 mil euros, depositados numa conta, que acabaram por reverter a favor do Estado português.

O revés foi duro, naturalmente. Mas Carlos F. continuava a lutar, agarrando-se à parte do negócio que a Justiça classificava como “legítima”. Ainda na cadeia, iniciou uma batalha jurídica para demonstrar a licitude e génese dos bens que lhe restavam, seguro pela documentação, que comprovava que o stock de nove quilos de ouro, guardado num cofre da Caixa, “não fazia parte de qualquer esquema ilegal”. O processo, todavia, arrastou-se.

Ao longo de dois anos, o tribunal bloqueou a entrega do ativo, cujo valor continuava a escalar (por esta altura, o preço do ouro já subira 65%, pelo menos). Apenas em fevereiro de 2020, o juiz do Tribunal de Leiria determinou o levantamento da apreensão dos bens. No mês seguinte, a PSP foi levar as caixas aos familiares do então recluso, que, experientes no setor, perceberam “a olho” faltarem ali “imensos artigos em ouro, prata, moedas e relógios”, conta, à VISÃO, Carlos F. “Onde está o resto do meu ouro?”, começou a questionar, repetidamente, a partir da sua cela.

Passaram 13 anos da apreensão, quatro da ordem de levantamento pelo tribunal. Carlos F. reclama o desaparecimento de 7,5 quilos de ouro, com valor estimado nos €600 mil. O homem continua a pagar impostos sobre estes bens, mesmo nunca mais lhes tendo posto a vista em cima. “Vivo em grande sofrimento e apavorado. Sinto-me roubado, e ninguém parece capaz de me resolver este problema”, lamenta.

A discussão perdeu-se entre a papelada da Justiça portuguesa. O ourives apresentou queixa no Tribunal de Leiria, que não identificou irregularidades. Carlos F. apresentou requerimentos ao DCIAP, em Lisboa, o que valeu a abertura de um inquérito, com investigação a cargo da PJ; o caso seria arquivado pouco depois.

Nos (muitos) documentos analisados pela VISÃO, constatam-se contradições, poucas (ou nenhumas) certezas, além das versões oficiais. Ouvida pelo Ministério Público, uma funcionária da secretaria do Tribunal de Leiria chegou a alegar que os lotes “perdidos” tinham sido entregues, em 2017, a um outro arguido neste processo, familiar de Carlos F., também com bens arrestados, mas que seria absolvido de todos os crimes. A versão contradiz, porém, com o timing da autorização de levantamento dada pelo juiz (apenas, recorde-se em 2020). “É tudo mentira, isso nunca me foi entregue”, assegura, à VISÃO, este homem, involuntariamente envolvido no imbróglio.

A polícia responde “não ter mais nada” para entregar. Um juiz ainda admitiu existirem “discrepâncias” entre listas e material entregue a Carlos F., mas não avançou com soluções. O Tribunal de Leiria repete: “Já foi tudo resolvido no âmbito desse processo [16/11.1 PERLA]; todos os bens foram entregues aos respetivos proprietários”, diz, à VISÃO, fonte dos serviços, “que conhece o processo”.

A VISÃO solicitou mais esclarecimentos ao Tribunal de Leiria, pedindo confirmação – e documentação – que possa confirmar a entrega, mas, perto do fecho desta edição, o tribunal pediu mais dias para responder. E a pergunta mantém-se: Onde está o ouro de Carlos F.?

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