A investigação aberta pelo Ministério Público ao chamado “caso das gémeas” luso-brasileiras – que receberam, em 2020, um tratamento com o medicamento Zolgensma para a atrofia muscular espinal – já delimitou os eventuais crimes praticados pelos principais intervenientes em todo o processo: abuso de poder e prevaricação, segundo adiantou à VISÃO fonte judicial. António Lacerda Sales, ex-secretário de Estado da Saúde, Nuno Rebelo de Sousa, empresário e filho do Presidente da República, e médicos do Hospital Santa Maria, em Lisboa, estarão entre os principais suspeitos.
Em causa estará a violação das regras de acesso ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) definidas pela Portaria 147/2017 e pelo Decreto-Lei 18/2017 (aplicável à data dos factos), as quais não foram cumpridas, tal como a Inspeção Geral das Atividades em Saúde (IGAS) mencionou num relatório de inspecção ao caso divulgado em abril.
De acordo com o documento, recorde-se, o “acesso das duas crianças à primeira consulta hospitalar desrespeitou”, em primeiro lugar, a “disciplina do artigo 8º da Portaria 147/2017”, que estabelece um conjunto de regras para a “referenciação da primeira consulta de especialidade hospitalar, e também os princípios geral do tal Decreto-lei (entretanto revogado pelo Decreto-lei 52/2022) que definia, entre outras matérias, os “princípios gerais na prestação de cuidados de saúde”, os quais deveriam ser prestados “observados os princípios definidos para a rede de referenciação técnica”.
A investigação levada a cabo pela IGAS concluiu, justamente, que aquelas regras não foram cumpridas, desde logo pela referenciação das duas crianças no SNS. A Inspeção, segundo o documento a que a VISÃO teve acesso, descreveu os vários desenvolvimentos do caso até à administração do medicamento às duas crianças.
A IGAS começou por estranhar que ambas as crianças tenham chegado a ter consulta agendada para o Hospital dos Lusíadas, desmarcada a 6 de novembro de 2019. No dia seguinte, Nuno Rebelo de Sousa, após várias diligências no Palácio de Belém, manteve uma reunião com António Lacerda Sales, tendo solicitado a intervenção deste para desbloquear o assunto. Já depois de toda a polémica, Marcelo Rebelo de Sousa revelaria, num jantar com jornalistas estrangeiros, ter cortado relações com o filho: “É imperdoável, porque ele [Nuno] sabe que eu tenho um cargo público e político (…) Não sei se vai ser responsabilizado, não me interessa”, afirmou Marcelo Rebelo de Sousa, citado por órgãos de comunicação brasileiros. “Ele tem 51 anos, se fosse o meu neto mais velho e preferido, com 20 anos, sentir-me-ia corresponsável. Mas com 51 anos, é maior e vacinado”, acrescentou o Presidente da República.
A 20 de novembro de 2019, a secretária pessoal de Lacerda Sales na secretaria de Estado da Saúde enviou um email à diretora do Departamento de Pediatria do Hospital de Santa Maria com informação sobre as duas crianças. Ouvida pela IGAS, Carla Silva declarou ter recebido instruções de Lacerda Sales para, num primeiro momento, entrar em contacto com Nuno Rebelo de Sousa de forma a recolher elementos sobre as crianças e, já numa segunda fase, “contactou telefonicamente com a Diretora do Departamento de Pediatria, contacto que formalizou pelo email de 20 de novembro de 2019” .
Segundo a Inspeção, a diretora do Departamento de Pediatria, Ana Isabel Lopes, “confirmou a receção do referido email, remetido, no dia 20 de novembro de 2019, pela secretária pessoal do SES, que já tinha secretariado uma anterior direção daquele departamento ” a solicitar “ajuda para o agendamento de uma consulta e avaliação por neuropediatra, tendo nesse mesmo dia feito chegar o pedido ao diretor clínico”, Luís Pinheiro. Posteriormente, Ana Isabel Lopes “informou” a médica Teresa Moreno “da indicação do diretor clínico para a marcação das consultas de patologia neuromuscular para duas gémeas, até ao final do ano, tendo a esta última alertado que o objetivo da família era especificamente a obtenção do tratamento com Zolgensma. Não obstante, o diretor clínico manteve as instruções de marcação das primeiras consultas da especialidade para as gémeas, que foram agendadas para o dia 5 de dezembro de 2019″, lê-se no relatório da IGAS, que afirma, contudo, que “não obstante os depoimentos contraditórios”, não ter sido possível “face à documentação carreada para os autos”, concluir que Luís Pinheiro “tenha prestado um acompanhamento diferenciado e que o mesmo tenha conexão com o modo de acesso das crianças à consulta”.
No contraditório, Lacerda Sales procurou desvalorizar o depoimento da sua antiga secretária – “Qual o motivo para a inspeção-geral dar mais credibilidade ao depoimento da secretária pessoal que ao do secretário de Estado da Saúde?”, questionou -, mas a IGAS realçou um ponto forte das suas declarações: “Não se vislumbra como a secretária pessoal do SES poderia ter tido conhecimento do caso das duas crianças gémeas, dos seus dados pessoais e da informação quanto à disponibilidade dos pais para a realização de consulta, informação esta que não constava no ofício da Casa Civil do Presidente da República, que não fosse através do modo e contactos referidos no seu depoimento”.
Tendo em conta todos estes elementos e outros já eventualmente apurados pela Polícia Judiciária, que tem investigado o caso, como adiantou o Correio da Manhã, o Ministério Público admitiu a existência dos crimes de abuso de poder – “O funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa” – e de prevaricação de titular de cargo político – “O titular de cargo político que conscientemente conduzir ou decidir contra direito um processo em que intervenha no exercício das suas funções, com a intenção de por essa forma prejudicar ou beneficiar alguém, será punido com prisão de 2 a 8 anos”.
Lacerda Sales pediu adiamento da audição na Comissão Parlamentar de Inquérito
Esta terça-feira, o ex-secretário de Estado da Saúde, atualmente deputado do PS, pediu o adiamento da sua audição na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) ao caso. De acordo com Rui Paulo Sousa, deputado do Chega e presidente da CPI, Lacerda Sales alegou motivos profissionais para não estar presente na audição que estava agendada para quinta-feira. A Comissão, entretanto, agendou uma nova data: 18 de junho.