O julgamento do caso do Banco Espírito Santo (BES) ainda não arrancou, mas os preliminares estão já carregados de pequenas polémicas, que fazem antever um longo e demorado processo. A juíza presidente do coletivo que vai julgar Ricardo Salgado, Amílcar Morais Pires, Isabel Almeida, Francisco Machado dos Santos, entre outros, tentou agilizar a tramitação dos autos, mas já começou a receber queixas: há arguidos que fazem questão em receber a acusação em papel e o advogado das centenas de lesados do BES contestou a separação dos pedidos de indemnização quando, publicamente, a tinha saudado.
A 1 de março, a juíza Helena Susano teve de dar resposta a um conjunto de reclamações. A primeira partiu dos arguidos Etinne Cadosh, Michel Creton e da sociedade Eurofin, todos acusados de terem participado num esquema para maquilhar as contas do banco, declarado insolvente em agosto de 2014. Alegaram estes arguidos que o envio de “links ao invés de cópias das peças processuais em causa”, a acusação, era nulo, porque o “legislador não regulou a tramitação dos autos em função da dimensão comum ou incomum”.
Ou seja, segundo as defesas, posição que foi acompanhada pelo Ministério Público, os arguidos deveriam ter recebido uma cópia da acusação em papel, em vez de um link (protegido por password) enviado pelo tribunal para que o documento fosse descarregado.
Respondeu Helena Susano, dizendo que a lei “não diz se se trata de uma cópia em papel ou cópia digital, exatamente porque a realidade processual é dinâmica e a norma deve ser lida em adequação ao caso concreto”. A magistrada sustentou ter adoptado este método também por “questões ambientais e financeiras, estas a cargo do erário público e aquelas para proteção da natureza, que, a seu ver, se impõe ponderar no caso concreto, pois o papel gasto para imprimir 18 conjuntos de acusações ascenderia, imagine-se, contas feitas por alto, 74 106 folhas, às quais acresceriam 3 978 folhas relativas à decisão instrutória, e mais duas acusações e duas decisões instrutórias em língua francesa, num total de cerca de 87 000 folhas”.
Apovitando para deixar um recado: “Surpreende, pois, que arguidos, com estatuto profissional de administradores, conforme resulta dos autos, possam sentir dificuldade em aceder a uma cópia que lhes é facultada de forma fácil, à distância de um clique”.
Advogado dos lesados “dá tiro no pé”
Ao mesmo tempo que decidiu sobre o acesso à acusação através de um link, Helena Susano também respondeu a dezenas de requerimentos que contestaram a sua decisão, de janeiro deste ano, em retirar do processo crime 1306 pedidos de indemnização de lesados, remetendo-os para a jurisdição cível. No final de janeiro, a juíza presidente do coletivo que vai julgar Ricardo Salgado, Amílcar Morais Pires, Isabel Almeida, entre outros, determinou que os 1306 pedidos de indemnização cível que dizem respeito a 2475 lesados fossem retirados dos processo-crime, devendo, alegou a magistrada judicial, correr na jurisdição cível. Helena Susano referiu, em defesa da sua posição, ser “intolerável o retardamento que acarreta ao processo penal” e por as “as matérias” em causa “não se compaginarem, em sede penal, com o rigor que se exige do julgador”. “Não se pense que o tribunal, ao tomar esta decisão, se mostra insensível à necessidade de novo impulso processual por parte dos demandantes, agora na instância cível, ao cabo do tempo já decorrido”, acrescentou.
Tal como a VISÃO adiantou, o Ministério Público colocou-se ao lado de centenas de lesados, considerando que nem todos os pedidos deveriam ser retirados.Os procuradores Carla Dias, César Caniço e Sofia Gaspar, propuseram uma solução: o tribunal apenas manter no processo os pedidos cíveis “em que a prova é integralmente (ou quase) a da acusação” e nos quais “não são suscitadas” novas questões, nem diligências além das já definidas no objeto do processo.
Ainda assim, os procuradores do Ministério Público realçaram, num requerimento a que a VISÃO teve acesso, que, caso todos os pedidos cíveis fossem separados do processo-crime, estes teriam de “aguardar decisão” do julgamento (crime) “com trânsito em julgado, sob penal de oposição de julgados”, isto é, decisões contraditórias entre a justiça cível e a criminal.
Quem também surgiu a aderir aos argumentos dos que contestaram a separação dos pedidos de indemnização foi o advogado Nuno Vieira da Silva que, só à sua conta, representa 907 lesados. Num requerimento enviado ao tribunal, o defensor deixou claro que iria “exercer o seu direito de recorrer” do despacho de janeiro da juíza.
Ora, a esta posição, Helena Susano respondeu com uma citação de Nuno Vieira da Silva, em declarações à Agência Lusa: “Nós estávamos à espera, muitas vezes falamos nas reuniões com os lesados acerca desta possibilidade de parte das indemnizações serem transferidas para o tribunal cível e, portanto, vemos neste espaço até algo positivo, porque irá ser dada uma importância ao processo-crime nunca visto em Portugal”.
O mandatário da maioria dos lesados considerou ainda que a decisão era “uma situação perfeitamente normal no ordenamento jurídico português” e que poderia funcionar como um acelerador do processo-crime BES/GES, que arranca em 28 de maio, quase uma década depois do colapso do Grupo Espírito Santo. Seguem-se vários recursos para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Queda do banco aconteceu há quase dez anos
Este processo teve início na queda do Banco Espírito Santo, em 2014 — foi a 3 de agosto de 2014 que o Banco de Portugal anunciou a resolução do BES. A acusação foi conhecida em julho de 2020, já com um dos arguidos falecido — José Castella. Também José Manuel Espírito Santo, da família, e que tinha sido acusado pelo Ministério Público de oito crimes, morreu no ano passado.
Ricardo Salgado será julgado por 29 crimes de burla qualificada (em operações que provocaram prejuízos superiores a 11 mil milhões de euros), 12 de corrupção ativa no setor privado, sete de branqueamento, sete de falsificação de documento, cinco de infidelidade, dois de falsificação de documento qualificada, dois de manipulação de mercado e um de associação criminosa.
Durante a fase de instrução, vários advogados defenderam que não estavam reunidos os pressupostos para configurar crime de associação criminosa, mas o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa decidiu manter a acusação por este crime, que surge em coautoria com Machado da Cruz, Morais Pires, Isabel, Almeida, António Soares, Pedro Pinto, Nuno Escudeiro, Pedro Serra, Alexandre Cadosh, Michel Creton, Cláudia Faria e Paulo Ferreira.
“O interesse do arguido Ricardo Salgado em todos os esquemas delineados por si, ou por terceiros, a seu mando, perpassa a acusação e é puramente financeiro, já que não está acusado de praticar caridade“, escreveu o juiz Pedro Santos Correia, no despacho da decisão instrutória, acrescentando que “os planos” de Salgado “não seriam certamente por causas sociais, pelo que a estratégia da defesa que assim vem sustentada é, no mínimo, hipócrita, já que parece que nem leu a acusação no seu todo”.