Não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe. Esta máxima poderia ser o fiel da balança entre duas visões opostas na forma de encarar a vida. Na primeira, admite-se que que um mal nunca vem só e que tudo o que pode correr mal correrá e, até, da pior forma possível. Na segunda, tristezas não pagam dívidas e impõe-se estar alegre para, desse modo, atrair coisas boas, como os tão almejados sucesso e felicidade.
Qualquer uma destas vias enferma de uma lacuna: não há meio de garantir que funcionam para evitar a angústia existencial que nos toma de assalto ou afugentar uma inquietação persistente, capaz de tirar o sono. Nós, seres humanos, evoluímos mas continuamos a partilhar a sensação de que a vida é, por vezes, assustadora, desgastante e genuinamente insatisfatória.
Vamos aos factos. Perder um ente querido, ter uma doença complicada, uma desilusão com um amigo, um amor ou sonho que chegou ao fim ou, ainda, ser alvo de desemprego involuntário são motivos suficientes para se ficar, pelo menos temporariamente, infeliz, frustrado ou injustiçado. O que se faz com isso, ou a partir daí, é já outro campeonato.
“Eu já estava à espera disto”, dirão uns, entregando-se a um estado de insatisfação crescente e, não raras vezes, prolongada. Outros empenham-se em afastar sentimentos incómodos e empenham-se numa busca incessante de um estado de fruição onde o possam encontrar, “porque a vida não é só isto”.
Mesmo sabendo que, à semelhança dos batimentos cardíacos e da respiração, a vida é feita de altos e baixos, e que raramente se processa de forma linear, todos queremos saber qual o segredo para viver em paz com as circunstâncias, externas e, sobretudo, internas. Como assim?
Não raras vezes, e sem ter consciência disso, contribui-se, em algum grau, para o desconsolo e insatisfação, em sede própria. Por exemplo, desvalorizar metas alcançadas, apontando à floresta sem apreciar a árvore, aspirar mais ou melhor (os perfeccionistas que o digam) ou comparar o que se tem com o que tem o vizinho revelam-se, mais cedo ou mais tarde, tiros no pé.
Assim se chega ao contentamento descontente imortalizado por Luís de Camões, ao saudosismo pelos paraísos sonhados e, entretanto, perdidos pelo caminho, por conta do Princípio da Realidade de que falava Freud. Como reencontrar o contentamento no meio da incerteza (e das agruras) dos dias?
As vantagens da insatisfação
À luz da Psicologia, a insatisfação ganha forma e ocupa lugar quando os planos falham, os desejos não se cumprem e as necessidades e motivações ficam por realizar, à espera de melhores dias. Uma pessoa dececiona-se, umas vezes consigo (vem o desânimo), outras com o mundo (“O inferno são os outros”, dizia o pensador francês Jean-Paul Sartre). Porém, é na adaptação às crises que se evolui (a necessidade aguça o engenho, e de pouco vale enfiar a cabeça na areia).
Na prática, a insatisfação prolongada, seja no trabalho, na vida social ou familiar, é um catalisador de mudança. “Até certo ponto, as dificuldades geram crescimento, pois levam-nos a reestruturar os esquemas mentais que usamos para interpretar o real”, esclarece o psicólogo clínico e forense Mauro Paulino.
Passar por uma perda, que constitui uma rutura ou descontinuidade na trajetória de qualquer um de nós – um luto ou o fim de um contrato laboral, por exemplo – pode revelar-se uma oportunidade, também. O docente universitário refere-se ao “crescimento pós-traumático, em que se aprende a lidar com os dados da realidade e a atribuir-lhes um novo significado”. Sublinhando que “os livros de autoajuda não funcionam para todos, porque não há estratégias universais”, o especialista adianta que as experiências precoces e os traços de personalidade pesam na equação.
“Vinculações menos funcionais na primeira infância podem traduzir-se, depois, em baixa autoconfiança ou na sensação de que falta qualquer coisa”, prossegue. Assim, “em vez de adotar uma atitude pró-ativa na busca de soluções, a pessoa pode acabar por congelar diante de um obstáculo”. Quando as coisas correm mal face ao esperado, ter, ou não ter, recursos internos fará toda a diferença para lidar com as mudanças, pois “ficar privado do papel que se tinha antes, no emprego, numa relação, etc, implica adaptar-se sem sucumbir à frustração”, observa.
A natureza dos obstáculos – que nem sempre se podem prevenir ou controlar – pode funcionar como uma incubadora para desenvolver competências, aprender a melhor regular emoções e, até, a adiar a gratificação. Por exemplo, treinar a paciência durante a espera até que um litígio se resolva na Justiça, desidentificar-se de comentários provocadores ou violentos feitos por familiares, parceiros ou no trabalho ou, ainda, encontrar maneiras de mudar a habitação de que não gosta mas na qual tem de viver.
O que fazer com ela
Inicialmente, é preciso aceitar a experiência emocional e reconhecer tudo aquilo que não nos satisfaz numa ou em várias frentes. Nem sempre é fácil. A reação instintiva é fugir ao desconforto, ao medo e a outras emoções negativas. Outra mecanismo de defesa comum é fazer de conta que não se passa nada. Há ainda a versão “esperar que passe” e sucedâneos, como “melhores dias virão” e “não há nada a fazer, a vida é o que é”. Uma vez superada esta etapa, a seguinte não é menos desafiante: investigar as fontes que estão na origem do que não está a correr bem e progredir a partir desse trabalho de campo. Por fim, investir na procura ativa de soluções à medida de cada um.
Alcançar um registo mais satisfatório, em qualquer área da vida, requer uma postura curiosa, algum grau de experimentação e de flexibilidade e persistir no cumprimento das metas traçadas
Mais fácil dizer que fazer, especialmente quando as pressões externas para estar bem são elevadas, sobretudo na esfera profissional, marcada por exigências contínuas. Não raras vezes, fica-se refém das circunstâncias por longos períodos de tempo, sem compreender, ao certo, o que gera tanta tormenta. “É comum a insatisfação permanente não ter foco, ele não é claro para a pessoa que, ao sentir-se desmotivada, começa a distanciar-se psicologicamente”, observa a psicóloga clínica Liliana Dias. No limite, este impasse potencia o risco de stresse crónico e, até, de burnout.
Partindo da sua experiência clínica e formativa, a especialista em saúde ocupacional destaca a importância de clarificar as fontes do descontentamento. E muitas prendem-se com metas irrealistas e nem sempre centradas nas aspirações próprias: “Às vezes, as expetativas não assentam numa motivação intrínseca, que parte de dentro e é orientada para o que, de facto, se quer.” Fazer escolhas em função do que se pensa serem as expetativas de outros, tomadas como suas, é meio caminho para a desilusão e o fracasso.
“A Psicologia pode ajudar a questionar padrões de rigidez mental e a diversificar as formas de realizar-se”, afirma Liliana Dias. Admitindo que alguém afirma “não gosto do meu trabalho, mas não tenho energia para procurar outro, até porque talvez nem seja capaz”, o desafio é “avaliar as crenças que boicotam a busca de satisfação, ou levam a pessoa a desistir, por não se sentir merecedora ou pelo facto de as ações tomadas não trazerem gratificação imediata”.
Alcançar um registo mais satisfatório, em qualquer área da vida, requer uma postura curiosa, algum grau de experimentação e de flexibilidade e persistir no cumprimento das metas traçadas, o que nem sempre acontece.
“Vejo muitas pessoas que, após contemplarem fazer mudanças, não se comprometem, por acharem que vai ser muito difícil ou que não vão conseguir”, constata a psicóloga. “Às vezes, vão até ao fim do sofrimento e só se empenham em mudar quando já nada funciona.”
Como lidar, então, com o desassossego, a inquietação e o desconforto – sempre que atingem níveis suficientemente críticos, que funcionam como sinais de alerta? A este respeito, vale a pena citar o médico especialista em trauma, Gabor Maté, autor de livros como Quando o Corpo Diz Não e O Mito do Normal: não é aquilo que nos acontece, mas o que fazemos com aquilo que nos acontece, que impacta as nossas vidas, para o melhor e o pior.
Refletir sobre o que traz satisfação e o que não é satisfatório, questionar as crenças que norteiam os comportamentos, identificar valores e pontos fortes e guiar-se por eles na hora de fazer escolhas influencia o grau de satisfação com a vida e traduz-se em melhores indicadores de saúde.
A vida é difícil, mas…
Valorizar o que já se tem e nos preenche – algo que tantas vezes é negligenciado e de que só se tem consciência quando se perde (ter uma casa, pessoas de confiança com quem se pode contar, conquistas e pequenos prazeres quotidianos) – constitui, por si só, uma fonte de contentamento interno. Ao persistir no tempo, confere ainda outra vantagem, confirmada por inúmeros estudos em Psicologia da Saúde: amortece o impacto de factores de stresse e permite lidar de forma mais segura e tranquila com flutuações várias.
Por fim, conhecer-se nas interações com terceiros – incluindo a aceitação de hábitos e de pontos de vista divergentes – é condição essencial para flexibilizar formas de pensar e alargar horizontes. Um dia, ao ver-se em circunstâncias não planeadas, indesejadas ou adversas – e que transcendem a sua esfera de ação – pode surpreender-se com a sua capacidade de ajustar-se, sem esforço, evasões mentais ou pensamentos catastróficos com que antes se debatia. Finalmente, ganha corpo a máxima “a dor é inevitável, o sofrimento é opcional”, uma vez que se é capaz de por fim ao triste fado, poupando-se a estados de infelicidade desnecessários.
Num artigo da revista americana The Atlantic, refere-se o pensador, matemático e filósofo britânico Bertrand Russell que se inspirou nas suas próprias misérias para identificar oito equívocos comuns que a ela conduzem, sintetizados na obra A Conquista da Felicidade (entre elas, a comparação social e valorização excessiva da opinião alheia, a fuga ao medo e ao tédio e a vitimização).
Nos anos 1980, Stephen R. Covey, célebre autor americano na área da Gestão, proclamava, no bestseller Os Sete Hábitos das Pessoas Altamente Eficazes: “Os retrocessos são inevitáveis. A miséria é uma escolha”. Neste século, em que imperam o culto da felicidade e da cara alegre, apetece reivindicar o direito às nossas pequenas tormentas (desde que não nos infernizemos, a nós e aos outros, com os queixumes) a que prestamos homenagem, entoando-as, por exemplo, em inúmeros concertos ao vivo.
Como em tudo nesta vida, o segredo de vivê-la, na sua complexidade, está na simplicidade e na alternância do tempero (entre o sal e a pimenta, o doce e o amargo e tudo o que cabe no espaço entre eles).