Os sucessivos acórdãos do caso Alcindo Monteiro – que, aos 27 anos, foi assassinado na Rua Garret, em Lisboa, por militantes de extrema-direita –, já chamavam a atenção para “a completa ausência de arrependimento” dos envolvidos. A leitura da sentença do processo Hell Angels, no Tribunal de Loures, que ontem teve lugar, veio confirmar a prática continuada de crimes de dois dos envolvidos nos acontecimentos que, ainda hoje, ecoam da noite fatídica do dia 10 de junho de 1995.
Recuando 28 anos: Tiago Palma era um jovem de 21 anos que frequentava um curso socioprofissional de Desporto, e alimentava o sonho de chegar longe graças ao talento que, por essa altura, já demonstrara como atleta de alta competição na modalidade do lançamento do martelo – e que lhe valeu a alcunha de “Martelos”, que ainda hoje se lhe cola. Já Nuno Monteiro, conhecido como “Pia”, tinha apenas 20 anos, cumpria serviço militar como soldado de transmissões, e não descartava a possibilidade de seguir uma carreira nas Forças Armadas portuguesas.
Motivados por discriminação racial, os dois homens seguiam à cabeça do grupo de skinheads que protagonizou um dos episódios mais traumáticos da História recente da capital portuguesa (e do País), deixando um rasto de sangue e de morte ainda por superar – Alcindo Monteiro acabaria por morrer, tornando-se símbolo da luta antirracista em Portugal. Mas foram dezenas as pessoas agredidas – dez ficaram feridas com gravidade. A tragédia poderia ter sido ainda maior.
A Justiça daria como provado que Tiago Palma e Nuno Monteiro participaram nestes crimes, do princípio ao fim, fazendo parte do grupo (reduzido) de 11 elementos que tiveram ação direta no assassínio de Alcindo Monteiro. Foram ambos condenados com as penas mais pesadas do processo: 18 anos de prisão, por nove crimes de ofensas corporais e um de homicídio.
O ódio não prescreve
Duas décadas depois, já em liberdade, Tiago Palma, 48 anos, apicultor, residente em Almada, e Nuno Monteiro, 47, motorista, com casa em Palmela, figuravam na lista de nomes que integra o capítulo português grupo de motards Hells Angels, conotado com a extrema-direita e visto à escala global como uma organização criminosa que se dedica, sobretudo, ao tráfico de drogas e armas e à extorsão (a sua atividade foi mesmo proibida nos Países Baixos, onde as autoridades consideraram o grupo como um perigo público).
Em 2018, dezenas de membros e apoiantes dos Hells Angels, entre os quais Tiago Palma e Nuno Monteiro, participaram no ataque a um grupo de motards rival. No dia 24 de março desse ano, pela hora de almoço, os Hells Angels, munidos de facas, barras de ferro, paus e soqueiras, irromperam pelo restaurante Mesa do Prior, na Rua de Moçambique, no Prior Velho, Loures, onde decorria um convívio dos Red & Gold, agredindo brutalmente seis pessoas. O neonazi Mário Machado – que, curiosamente, também foi condenado pelos acontecimentos de 10 de junho de 1995 (embora ilibado do homícidio de Alcindo) –, o principal alvo, escapou das agressões graças a um imprevisto atraso.
Tiago Palma esteve, segundo a acusação, no restaurante e Nuno Monteiro serviu de motorista. Em maio de 2019, numa megaoperação que envolveu centenas de operacionais, a PJ deteve-os (e dezenas de outros companheiros de “armas”). Os dois homens foram agora condenados a 13 anos e meio de prisão.
O caso Hells Angels
Tiago Palma e Nuno Monteiro não vão sozinhos para a prisão. Num processo inédito em Portugal, o Tribunal de Loures condenou 82 elementos do grupo motard a penas de prisão entre os 12 e os 15 anos; na leitura da sentença, a juíza-presidente do Tribunal de Loures, Sara Pina, confirmou ainda que outros quatro acusados foram condenados a penas suspensas inferiores a dois anos e meio. Apenas um dos arguidos foi absolvido de todos os crimes.
O tribunal deu como provado a prática dos crimes constantes na acusação, que incluíam associação criminosa, ofensa à integridade física, extorsão, tráfico de droga, roubo e posse de armas e munições.
Ainda assim, as condenações ficaram aquém das pedidas pelo Ministério Público (MP), que, durante as alegações finais, defendia que as penas não deveriam ser inferiores a 17 anos para os cabecilhas da organização e de 15 anos para os restantes, num processo sem paralelo em Portugal.
O julgamento começou com 88 homens – um dos acusados (Rui Silva) foi, entretanto, morto com um tiro à queima roupa, em São Brás de Alportel, Algarve, em dezembro de 2022 –, na sequência de uma investigação que ficou a cargo da Polícia Judiciária (PJ), e depois de, na fase de instrução, o juiz Carlos Alexandre ter decidido enviar todos os arguidos para julgamento.