Três dias é objetivamente pouco tempo, mas para Aisha Noir os três dias que passaram entre a tarde de sexta-feira, 27 de janeiro, e a tarde de segunda-feira, 30, pareceram-lhe uma eternidade. Esses três dias em que Keyla Brasil esteve desaparecida, de telemóvel desligado e sem responder aos apelos dos seus amigos nas redes sociais, foram “assustadores”, diz a fotógrafa, cantora e vlogger brasileira, de 28 anos, a morar em Lisboa desde outubro de 2020.
“Fiquei apavorada e estive sempre apavorada até chegar a notícia de que a Keyla já tinha finalmente aparecido”, confessa Aisha. “Foi assustador ao ponto de eu colocar a minha segurança em jogo, porque deu para notar que existe uma extrema-direita em Portugal e que eles nos estão ameaçando, nos estão a colocar na marginalidade.”
O pavor por causa das ameaças de morte dirigidas aquela atriz trans também brasileira foi grande, mas o medo de Aisha não é de hoje. Embora meça 1 metro e 84, diz sentir medo físico de todas as vezes que sai à rua.
“Tenho medo do homem hetero porque desde a minha infância, como criança gay e até ao ensino médio, até ficar alta, sempre sofri ataques dele”, conta. “Hoje, defendo-me muito bem verbalmente; já fisicamente não sei o que fazer.”
Aisha é uma mulher bonita, elegante e vistosa, como se vê na sua página no Instagram, mas os olhares que atrai nem sempre são de apreço. E os ataques verbais são tão constantes que o seu projeto para 2023 é receber aulas de defesa pessoal. “Estou precisando muito dessas aulas para me sentir segura, porque sofro diariamente.”
Natural de Belo Horizonte, Aisha trabalha em marketing digital de forma remota, mas faz questão de se apresentar como ativista política “para ter força mesmo”. Recusa ficar refém do medo e continua a sair à rua, assumindo: “Sou uma mulher trans, sou preta, sou brasileira.”
O ativismo começou com a sua transição, há cerca de três anos. Ao chegar a Amesterdão, na Holanda, sentiu que tinha toda a liberdade para ser o que era. “Se tivesse vindo direto para Portugal, não teria feito a transição”, analisa, retrospetivamente. “Porque o diferente aqui é excluído. O não-português, mesmo não sendo transgénero, é excluído.”
Aisha diz ver isso mesmo no seu dia a dia e mesmo ao seu lado. O ataque que ela e o marido, Lúcio Sousa, de 29 anos, professor de História, sofreram a 12 de novembro de 2021, um ano depois de se mudarem para Lisboa, seria apenas o primeiro de muitos.
Lúcio, também brasileiro e também negro, foi tão vítima como ela nessa noite de sábado, à porta de um bar no Bairro Alto.
Os dois foram de tal maneira hostilizados logo à entrada, pelo segurança, que Aisha decidiu queixar-se aos responsáveis. A queixa deve ter corrido célere porque mais tarde, à saída, ela e o marido foram agredidos com socos e pontapés por parte de um grupo de homens, uns dez, em que se contavam alguns seguranças.
A rua estava cheia de gente e, apesar dos gritos de Aisha, não houve ninguém a sair em defesa do casal brasileiro.
Após a agressão, Aisha e Lúcio ainda tentarem entrar novamente no bar, para apresentarem queixa, mas seriam impedidos. Na rua, pediram de imediato ajuda a um elemento da GNR que calhou estar a passar por ali, e este solicitou a presença da PSP para que a denúncia fosse formalizada. Mas, uma vez que os dois brasileiros não tinham com eles os documentos que provavam terem requerido as autorizações de residência para trabalharem em Portugal, só estavam munidos dos respetivos passaportes, os agentes disseram nada poderem fazer.
“Os policiais se negaram a fazer o boletim, mesmo vendo o meu rosto machucado”, recorda.
Uns dias depois, quando Aisha e Lúcio se sentiram capazes de ir até uma esquadra da polícia, e já munidos dos documentos necessários e de um exame de corpo de delito realizado por um médico, foi-lhes dito que o sistema informático estava em baixo. “Sinto que, pelo fato de ser trans, negra e imigrante, não consegui fazer essa denúncia nem ser ouvida”, lamentaria Aisha à jornalista do site Agora Europa, durante a marcha em Lisboa para assinalar o Dia Mundial da Memória Trans.
Uma semana depois da agressão no Bairro Alto, Aisha ainda estava com um olho roxo e dores no corpo. Levava um cartaz em que se lia “Ser travesti não me faz menos mulher” e discursaria no final da marcha.
O Dia Mundial da Memória Trans é assinalado a 20 de novembro, em memória de todas as pessoas trans, não-binárias e de género diverso que foram assassinadas como resultado da transfobia.
De acordo com o relatório mais recente do TGEU, uma associação europeia pelos direitos das pessoas trans, que monitoriza informações desde 2008, houve 327 assassinatos relatados de pessoas trans e de género diverso em todo o mundo por violência de teor transfóbico, entre 1 de outubro de 2021 e 30 de setembro de 2022.
Com 222 casos, a América Latina e as Caraíbas continua a ser a região que relatou a maioria dos homicídios. E, pela primeira vez, a Estónia e a Suíça relataram casos – não por acaso, as vítimas foram mulheres trans negras migrantes, a jamaicana Sabrina Houston e a brasileira Cristina Blackstar, ambas foram apunhaladas até à morte nas suas próprias casas.
O mesmo relatório assinala ainda que 95% das pessoas assassinadas eram mulheres trans ou transexuais femininas, e que metade das pessoas trans assassinadas, com ocupação conhecida, eram trabalhadoras do sexo. Dos casos com dados sobre a raça e a etnia, as pessoas transexuais racializadas constituíram 65% dos assassinatos relatados, e 36% das pessoas trans assassinadas na Europa eram migrantes.
Quando se pergunta a Aisha o que lhe doeu mais no caso do ataque no Bairro Alto, ela não hesita: “Foi apanhar do jeito que apanhei e não ter tido a proteção da polícia.”
Desde que está em Portugal, Aisha fez inúmeras queixas, “incontáveis”, diz, tanto por causa de transfobia como por causa de racismo. Conseguiu sempre a presença de agentes da PSP, mas quase nunca que a levassem a sério.
“Os policiais não conhecem sequer o artigo 240 [do Código Penal, relativo à discriminação e incitamento ao ódio e à violência], nada”, lamenta. “Me tratam como uma louca e não me leem como uma mulher, tratam-me como um homem. É desgostoso. Em Amesterdão, a polícia é LGBT friendly, aqui é chocante.”
Além da queixa relativa à agressão à porta do bar no Bairro Alto, que acabou por fazer numa outra esquadra, Aisha já apresentou uma denúncia por ter sido impedida de usar uma casa de banho pública para mulheres, na Estação do Oriente. E, em novembro do ano passado, ela e Lúcio apresentarem uma terceira queixa, dessa vez por despejo ilegal transfóbico.
“Dei o meu depoimento na esquadra da minha área de residência, mas desde então, não disseram nada e acredito que não vão resolver nada”, diz. “Sou uma mulher trans, preta, brasileira”, repete, “tenho todos os desprivilégios.”
O facto de ser membro da Rede de Apoio Mútuo Lisboa, coletivo de proteção mútua que organiza trabalhadores, estudantes, moradores e pessoas sem abrigo em situação precária, dá-lhe força e coragem. Mas ainda há muito para fazer, alerta Aisha, nomeadamente em relação ao racismo.
“Quando aconteceram aqueles insultos racistas aos filhos da Giovanna Ewbank e do Bruno Gagliasso [atores brasileiros], o Presidente da República disse que não se deve generalizar, mas temos mesmo de generalizar porque a cultura portuguesa é racista e homofóbica”, defende.
Quanto à segurança das pessoas trans, o que aconteceu agora com Keyla Brasil varreu quaisquer dúvidas, acredita Aisha: “Temos de ir para a rua pedir para os nossos direitos serem respeitados, até porque, existindo esses agressores, nenhum trans está seguro. Mudança é fogo, eu sei, mas ela é urgente.”