O terror foi uma constante a partir da revolução russa de 1917, agravando-se, no final da década de 30, com Estaline a assumir as rédeas do poder. Mas, para o autor de “As Minhas Aventuras no País dos Sovietes”, “Os Blumthal” e “A Mais Breve História da Rússia”, a origem do mal vinha de trás, da essência partilhada com Marx, Lenine e Trotski.
Numa breve História da Rússia, como a que escreveu, que lugar ocupa uma figura como Estaline? Como o caracteriza?
Estaline deixou uma marca profundíssima na História da Rússia. É um dos dirigentes mais eminentes, principalmente por más razões. Refiro-me, claro, aos milhões de mortos e perseguidos na União Soviética. Claro que há sempre quem olhe para a figura e sublinhe que ele venceu a II Guerra Mundial, e o mais curioso é que isso vem da boca de marxistas/leninistas/estalinistas, que empolam o papel do dirigente e diminuem o papel das massas. É claro que não foi Estaline quem ganhou a II Guerra Mundial, foram os milhões de europeus, incluindo também os soviéticos, que lutaram contra Hitler. E, em determinadas situações, o papel de Estaline foi muito negativo, por exemplo, quando assinou o tratado Molotov-Ribbentrop, em agosto de 1939, que permitiu à Alemanha desencadear o conflito mundial. Sabemos que Estaline, e não só – parece ser típico dos dirigentes russos, e até do atual –, não tinha em grande apreço a vida humana. Usar “carne para canhão” é uma expressão que se adapta a Estaline.
Estaline atingiu um estatuto de quase lenda, através de um enorme culto da personalidade, que promoveu, apostando nessa ideia do esforço de guerra e do contributo decisivo para a derrota dos nazis. Uma imagem que, na verdade, durou por muitos anos.
Durou e ainda perdura em alguns setores. O culto da personalidade atingiu cumes nunca vistos – tudo o que acontecia de bom, em todos os setores da vida soviética, da cultura à indústria, passando pela agricultura, devia-se ao grande chefe. Desenhou-se a figura de um pai todo-poderoso que fazia tudo para cuidar dos filhos, e fazia-o de tal maneira que estes “filhos” não sabiam como os outros “pais” cuidavam dos filhos deles. Criou-se um mundo completamente isolado e convenceu-se as pessoas de que este era o melhor dos mundos, porque as pessoas não podiam ver outros.
O que há de personalidade e de ideologia em Estaline? Foi, sobretudo, um louco sanguinário ou um obstinado político?
Era uma coisa e outra. Foi, como político, um dos melhores exemplos do maquiavelismo levado ao extremo, em que todos os meios eram justificados para se chegar a um fim. Estaline não tinha escrúpulos absolutamente nenhuns. Estaline é um ditador típico, ao lado de Hitler e de Mao Tsé-tung. Não foi um caso extraordinário, como muitos querem fazer crer – foi, sim, um dos maiores ditadores da História na sua dimensão repressiva.
Na Carta ao Congresso escrita por Lenine, em 1922, quando já estava doente, este alertou para os traços caraterísticos de Estaline ‒ e na verdade também de Trotski. Dizia claramente: “Estaline foi concentrando nas suas mãos um poder enorme, e não estou certo de que vai usá-lo com suficiente prudência.” E depois, na adenda à Carta ao Congresso, disse que ele era incapaz de ser secretário-geral. Porque estes alertas caíram em saco roto e ninguém o ouviu?
Estaline fez todos os possíveis por guardar essa carta no secretismo – foi lida e nunca mais foi publicada, a não ser depois da queda da União Soviética. A carta esteve proibida e, quando se falava nela, era sempre em termos muito diferentes. Estaline já passava a ideia, para dentro do partido, de que Lenine estava doente e de que já não tinha capacidade para avaliar a situação. Mas não podemos ter ilusões: a outra figura, que ele considera um pouco melhor do que Estaline, e que era Trotski, na verdade não era muito melhor. Os trotskistas vêm com a tese de que, se ele tivesse sido eleito, as coisas teriam corrido de forma diferente. Isso não é verdade, basta olhar para o que foi o seu passado cruel e sanguinário para perceber que a História ia acabar de forma semelhante ou talvez até pior.
E se Lenine não tivesse morrido tão cedo? Ele também teve um passado negro – foi um enorme manipulador, mandou executar pessoas…
Sim, é caso para se dizer que a origem está no princípio [risos]. Lenine, juntamente com Trotski – e uma das coisas que Estaline sempre tentou fazer foi minimizar o papel deste no período revolucionário, mas, se Lenine era o teórico, o prático era o Trotski –, tinha a mesma cartilha e os mesmos métodos de Estaline. Lenine não era um democrata – defendia pensamentos paranoicos, mudava de ideias sempre que necessário. Era um grande tático, se fosse preciso recuava um passo para depois dar dois. E era, também, uma pessoa absolutamente cruel e sem qualquer tipo de sentimento. Há quem diga que a culpa do que aconteceu depois é dos desvios em relação ao Leninismo, mas não é verdade!
O Leninismo continha em si muitas das marcas que viriam a ser caraterísticas de Estaline?
Continha-o em si, não só em termos teóricos mas também em termos práticos. O que é o comunismo de guerra, por exemplo? Durante a guerra civil utilizavam-se meios de chantagem absolutamente desumanos, como fazer famílias reféns, matar uma parte da aldeia para que a outra entrasse nos eixos são apenas alguns dos métodos que Lenine utilizava, depois desenvolvidos e “aperfeiçoados” por Estaline. O problema aqui é o poder absoluto e o sistema de partido único. Só os idiotas úteis, ou pessoas muito fanáticas da ideologia, é que não compreendem que é sempre impossível criar um sistema democrático com base num partido único.
É uma contradição nos termos.
Isso. É como fazer um jogo de futebol só com uma equipa e metade do campo. A únicas contradições que existem são contradições dentro do partido, que nem sequer demonstram o caráter democrático desse partido. Prova disso é que, quando Estaline chega ao poder, vai começando a liquidar os seus camaradas, tanto os que lhe faziam frente como os que foram aliados.
Comparar Estaline e Hitler é absurdo, defendeu Francisco Louçã no prefácio de “A Corte do Czar Vermelho”, de Sebag Montefiore. “É grotesco do ponto de vista histórico. São duas histórias diferentes, em dois contextos diferentes”, disse. É ou não possível comparar os dois?
Não é só comparar: Hitler e Estaline são irmãos gémeos! Essa tese defende que a teoria marxista não traz dentro de si traços violentos, como o racismo e o antissemitismo, mas não nos devemos esquecer de que dentro do próprio marxismo, e depois do marxismo-leninismo, a base de tudo é a violência, é a luta de classes, que tem por objetivo a tomada do poder, por via pacífica, que nunca é possível, e por via armada, a única que foi possível. O que deu origem a regimes muito semelhantes em termos de resultados. E o que nos deve interessar são os resultados do nazismo e do comunismo. Como se costuma dizer – venha o diabo e escolha. Escrevi um livro, que certamente o dr. Francisco Louçã não se dignou a ler, que se chama Os Blumthal. É a história da família da avó da minha mulher, que é estoniana. Ela é um daqueles exemplos, não muito raros, de quem passou por campos de trabalho estalinistas e depois por campos de concentração nazis, ou vice-versa. Pergunte-se a essas pessoas qual é a diferença! Ela explicava: “Nos campos de concentração estalinistas, matavam-nos com o trabalho e com o frio; nos campos nazis, matavam-nos com a fome.”
O resultado era o mesmo.
A questão é que a repressão nazi está muito melhor estudada do que a repressão estalinista. Se for a uma livraria, encontra à venda 20 livros sobre o nazismo, e sobre o comunismo encontra 20% ou 30% disso. Muita da documentação ainda hoje é secreta, os russos não publicaram tudo, e o que publicam é a conta-gotas e selecionado.
Na verdade, a História russa foi quase sempre controlada.
Sim. E sabemos que na Europa houve sempre uma predominância da esquerda no ensino e na escrita da História do século XX. Era de mau gosto criticar Estaline, porque ele venceu Hitler e salvou a Europa – essa era a narrativa oficial. Só agora começam a ser ouvidos aqueles que, no Leste da Europa, dizem que não foram libertados pelas tropas soviéticas – as tropas soviéticas substituíram uma ditadura por outra. Mas isto, para muitos historiadores, é ainda uma heresia. Mesmo em termos de métodos e direção do estado, há muitas coisas, entre os dois regimes, que se assemelham. Um determinado setor da academia não gosta de ouvir isto, porque não lhes convém mexer em temas delicados – mas estas questões têm de ser colocadas.
A Anne Applebaum, no livro “Gulag”, diz isso mesmo: que fazer-se a história do comunismo foi muito difícil, e que é enorme a discrepância do que se sabe hoje em relação ao que foi o nazismo. Porque não interessava remexer no passado, porque não se dava acesso aos ficheiros, etc. O mesmo acontece em relação ao Holodomor – há quem continue a pôr em causa o que aconteceu, seja por ignorância ou por facciosismo.
É verdade. E há até quem ponha em causa a existência de campos de concentração… Há de tudo. Mas em relação ao Holodomor, tenho uma posição diferente da que é defendida pela maioria dos ucranianos. Não o vejo como o genocídio, mas sim uma grande fome, provocada pelo poder, mas o objetivo não era especificamente matar ucranianos. Era quebrar a espinha dorsal do campesinato de forma a que este aceitasse a coletivização. E o Holodomor tem lugar noutros locais sem ser na Ucrânia – no Cazaquistão morreram milhões de pessoas. É sem dúvida um crime contra a Humanidade, mas evito utilizar a palavra genocídio para não se cair na banalização dos termos. Por exemplo, uma das razões que Putin invoca para invadir a Ucrânia foi um alegado genocídio de russófonos.
Depois de 1954, a Rússia e os seus dirigentes conviveram de forma distinta com a herança de Estaline e o seu legado. Como foi esta evolução e porque a desestalinização demorou tanto tempo a fazer-se?
A desestalinização ainda não acabou – e esse é o grande problema da Rússia! Foi iniciada por pessoas que estavam extremamente comprometidas com o regime de Estaline, e que eram tão sanguinárias como ele. O próprio Nikita Kruschev foi responsável pela morte de milhões de pessoas. Ele tentou uma solução que pusesse fim à matança e à existência de centenas de gulags. Por que razão, logo a seguir à União Soviética, liquidam Lavrenti Beria? Porque sabem que, se ele tomasse o poder – e ele iria tentar –, seriam todos liquidados. Há uma espécie de pacto depois, concordando todos que se alguém fosse afastado não seria assassinado. Falou o princípio da sobrevivência. Parar a matança estalinista já é um grande passo, mas não se meteu em causa a origem e as raízes do estalinismo. Parou-se no meio, até chegar finalmente Mikhail Gorbachev. Quando ele chegou ao poder, uma das palavras de ordem era fazer regressar o partido a Lenine, vendendo a tal ideia de que Lenine era um cidadão muito humano. Conta-se até uma anedota sobre isto: a mulher de Lenine bate à porta a dizer que tinham trazido um grupo de socialistas revolucionários para serem fuzilados. E ele diz: “Muito bem, mas antes não se esqueçam de lhes oferecer um chá!.” [Risos.] Só quando Gorbachev começa a mexer na “porcaria” do passado é que se dá conta que o problema também está no Leninismo e no sistema ditatorial.
Como foi a relação entre os comunistas portugueses, e de Cunhal em particular, com Estaline? Como o PCP se afastou dos crimes do estalinismo, depois de 1954? Foi fiel a Estaline e depois a Kruschev e Brejnev por uma questão de sobrevivência?
Cunhal nunca se encontrou com Estaline, pode tê-lo visto quando foi a reuniões da juventude comunista, mas nunca encontrei um documento que prove que os dois alguma vez falaram. É preciso sublinhar que o Partido Comunista Português foi proibido por Estaline em 1939, e que as relações só foram reatadas em 1947. A política do PCP em relação a Estaline e à História soviética faz lembrar uma velha anedota que conta que um camarada ia ser expulso do partido e quando estava a ser interrogado lhe perguntam se alguma vez se desviou da linha do partido. “Não, desviei-me sempre com a linha do partido!”, respondeu. O PCP adaptava-se não só por convicção mas porque era pago por isso – dependia do financiamento de Moscovo.
Mas Cunhal acabou por se afastar do Estalinismo publicamente.
Sim, como político tinha de fazer isso para manter uma face limpa. Adaptou-se para sobreviver.
Como os russos de hoje veem a figura de Estaline? Já fizeram o devido ato de contrição com os crimes deste passado recente, como os alemães? Ou simplesmente não têm ainda a consciência de todos os horrores que Estaline perpetrou?
Só quando Gorbachev iniciou as suas reformas e começaram a ser divulgados alguns documentos, como a tal Carta ao Congresso… Antes foram publicadas obras de Lenine, mas nunca eram obras completas – eram expurgadas das partes más. Só nessa altura, com Gorbachev, é que as pessoas se começaram a aperceber da real dimensão da ditadura comunista. Esse processo tem um retrocesso depois com Putin. Os arquivos voltam a fechar, por exemplo.
E Putin até mandou reescrever alguns dos manuais escolares e livros de História, branqueando a dimensão dos crimes de Estaline.
Os russos têm uma expressão filosófica que acho que diz tudo: “O futuro da Rússia é sempre resplandecente, o passado é sempre imprevisível.” Muda muito… Estamos, por exemplo, neste momento a ver Putin reescrever a História ao ponto de dizer que a Ucrânia e o povo ucraniano não existem.
Há semelhanças entre Estaline e Putin?
A criação de um sistema repressivo e de terror é comum aos dois e têm o mesmo desprezo pela pessoa humana. Mas isto é típico da História russa. Salvo raras exceções – o indivíduo foi sempre sacrificado em nome daquele mítico coletivo, não há direito a uma existência individual. A ideia está a ser vendida hoje como uma ideia sagrada – “nós estamos a ser atacados e somos o povo superior, ortodoxo, puro, limpo, que queremos salvar o Ocidente em vias de apodrecimento”.
E também é comum a mesma ambição imperialista que existia no conceito de União Soviética e que existe hoje novamente na Rússia de Putin.
Sim, claro. E aqui há um pormenor importante – isso foi uma das razões do fim da União Soviética. E vai ser uma das razões do fim do putinismo. A História repete-se, efetivamente.