Olga Balik não hesitou um minuto. Aos primeiros sons da chuva de bombas russas, a caírem dos céus em Kharkiv, na madrugada de 24 de fevereiro, esta ucraniana, de 35 anos, entrou rapidamente no automóvel da família e, na companhia dos seus dois filhos (rapazes de 10 e 5 anos) e da sua mãe, arrancou sem destino, apenas à procura de segurança, em direção ao Ocidente. Naquela noite infame, quando o sol ainda aguardava por nascer, um inesperado fosso abriu-se no seio desta família – os homens (marido e pai de Olga) ficariam para trás.
Olga agarrar-se-ia ao volante durante as 48 horas seguintes, ziguezagueando pelo vasto território ucraniano, presa em intermináveis filas de trânsito, repetindo, no fundo, o gesto de muitos milhões de compatriotas, que correram a fugir de um país a “ferro e fogo”. “Conduzi durante dois dias sem parar e sem dormir. Conduzi, apenas, sem pensar em muito mais. Lembro-me de passarmos horas presos nas filas de trânsito, com todas as outras pessoas que também tentavam escapar aos bombardeamentos russos, que procuravam somente um lugar seguro para sobreviver. Era a única coisa que podia fazer… Pelo rádio íamos ouvindo as notícias, tentando perceber o melhor caminho a seguir, que locais deveríamos evitar. Na altura, lembro-me também de ter a esperança de que os ataques pudessem parar a qualquer momento e que ainda seria possível voltar para trás e regressar a casa…”, recorda Olga. Os ataques, porém, nunca mais pararam. E Olga continuou a conduzir, na companhia da sua família, até que a estrada, finalmente, chegou ao fim.
O primeiro capítulo desta história será em tudo semelhante às experiências dos outros cerca de 50 mil refugiados da guerra que Portugal já acolheu. De coração incompleto, Olga chegou a Lisboa há seis meses, enfrentando uma vida em suspenso, a mais de 4.500 quilómetros da sua Kharkiv natal, cidade localizada a pouco mais de 25 quilómetros em linha reta da fronteira com a Rússia, mas que continua a resistir com baixas diárias aos ataques do invasor.
A adaptação à capital portuguesa não seria fácil, não tanto para Olga, viajada pela Europa em tempos de paz, mas, sobretudo, para Roman, o seu primogénito, a quem foi pedido que, da noite para o dia (literalmente), abdicasse, por tempo indeterminado e à força, de toda a vida que conhecera até então. Escola, amigos, família… Tudo se desvaneceu num segundo. “Tudo”, leia-se, menos uma coisa: uma paixão sem fronteiras que Roman Balik alimenta e que reencontraria em Portugal. Mesmo não percebendo ou falando uma única palavra de português, foi essa outra língua universal que devolveu o sorriso (possível) ao rosto desta criança de apenas 10 anos – como prova de como o futuro reserva uma promessa de vitória.
A primeira jogada
Roman Balik é uma criança como todas as outras, mas tem um talento especial. Há cerca de dois anos, quando tinha apenas 8, aprendeu a jogar xadrez, num clube perto da sua casa em Kharkiv. O que à partida seria apenas um “passatempo”, transformou radicalmente a vida deste rapaz. “Foi amor à primeira vista. Todas as conversas do Roman passaram a ser sobre xadrez, gostava de falar sobre os jogos que fazia, sobre os torneios em que ia participar… Pouco antes de fugirmos do país, aliás, preparava-se para participar no Campeonato Nacional da Ucrânia, agendado para Mykolaiv [cidade localizada a 700 quilómetros a sudoeste de Kharkiv], que agora está completamente destruída… O xadrez tornou-se um passatempo muito sério para ele”, conta Olga.
A mãe não podia imaginar, no entanto, o papel que, em breve, o xadrez representaria na vida de Roman (e como a ajudaria nesta fase dramática). Rapidamente, a criança revelou possuir enorme talento para a modalidade, mesmo no contexto ucraniano, país que após a independência em 1991 se habituou a produzir grandes mestres (cumprindo uma tradição de quase todas as repúblicas da ex-União Soviética). E este percurso só seria interrompido pelas armas.
Nem durante a (longa) viagem de oito dias pela Europa, em direção a Portugal, as peças de xadrez deixaram de se mover no tabuleiro que habita a mente e o coração desta criança. Foi já em Lisboa que esta modalidade permitiu a Roman reencontrar-se com o seu destino. “O meu filho estava muito frustrado e revoltado durante a nossa viagem. Então, para tentar mitigar um pouco aquilo que ele sentia, tive a ideia de contactar a Federação Portuguesa de Xadrez (FPX). Encontrei um endereço e-mail, na internet, e decidi enviar uma mensagem… Obtive uma resposta quase imediatamente. E foi assim que tomámos conhecimento da existência da secção de xadrez da Associação de Residentes de Telheiras (ART)” – um clube vocacionado para a formação de crianças e jovens, na freguesia do Lumiar (ver caixa).
Menos de 24 horas depois de pisar solo português, Roman e mãe seguiram por caminhos desconhecidos, em direção à sede do clube de Telheiras. “Lembro-me que o Roman estava muito nervoso… Chorava pelo caminho, com medo, porque não conhecia a língua portuguesa, porque achava que ninguém o iria compreender, falar com ele… Mas correu tudo de forma diferente! Fomos muito bem recebidos pelos treinadores e pelos colegas… Correu tudo bem”, diz Olga.
Uma escola de xadrez em Telheiras
Agostinho Roxo e Margarida Coimbra cruzaram-se entre tabuleiros de xadrez. Em 2017, os dois entusiastas da modalidade, que tiraram o curso de treinadores da Federação Portuguesa de Xadrez (FPX) e da Federação Internacional de Xadrez (FIDE, na sigla em inglês), decidiram dar vida à secção de xadrez do Centro Cultural e Recreativo dos Coruchéus, na freguesia de Alvalade. Nessa altura, naquele local, não havia ainda ninguém para mexer as peças.
“Começámos do zero. Lembro-me que que abríamos portas às terças-feiras, com uma sala vazia, mas, devagarinho, começou a aparecer um jogador, depois dois, depois três… Até que chegámos a ter cerca de 50 jogadores”, conta Agostinho Roxo. O contexto, porém, não era perfeito – e os treinadores começaram a procurar o espaço ideal para fazer crescer a modalidade naquela zona da cidade.
Entretanto, com a chegada da pandemia de Covid-19, as sessões de xadrez pararam, mas não o projeto pensado e concretizado por Agostinho Roxo e Margarida Coimbra. Ainda em 2020, os treinadores acabariam a contactar a Associação de Residentes de Telheiras (ART), que possuía o espaço disponível que procuravam. A mudança fez-se célere. E, hoje, é neste canto da freguesia do Lumiar que cerca de sete dezenas de jogadores (60 dos quais federados), dos 5 aos 20 anos, praticam xadrez duas vezes por semana (às sextas-feiras à noite e aos sábados de manhã).
“A nossa filosofia é receber jogadores que começam do zero, que podem até nem sequer saber jogar. O nosso objetivo é sermos um clube de formação pura. Na ART, procuramos que as crianças e jovens aprendam a modalidade e desenvolvam todas as valências associadas à prática do xadrez, para que se tornem pessoas melhores, que desenvolvam a capacidade de concentração, de cálculo e de tomada de decisão, por exemplo. Os nossos jogadores também entram em competições, é claro, mas esses são momentos que servem apenas para perceber se a aprendizagem está a correr bem. O mais importante é, sem dúvida, que as crianças aprendam a jogar xadrez e se divirtam a fazê-lo”, explica Agostinho Roxo.
Talento raro
A linguagem do xadrez é universal. Naquele final de tarde de sexta-feira, na sala retangular da ART, uma dezena de crianças e jovens “puxavam” há meia hora pela cabeça, tentando encontrar a solução para um exercício proposto pelo treinador Agostinho Roxo. “Xeque-mate em três jogadas. Jogam as pretas”, dizia o responsável. “Três? Mas como como?”, respondiam-lhe nos jogadores, confusos.
Roman entrou na sala naquele momento, cabisbaixo. “Então, tu é que és o Roman? Tinham-me dito que deverias aqui aparecer hoje. Queres experimentar? Xeque-mate em três jogadas. Jogam as pretas”, disse-lhe o treinador. Roman deu um passo em direção ao tabuleiro, rodeado pelos olhares curiosos daqueles que, mais tarde, se revelariam novos colegas e amigos, a maioria adolescentes. Durante alguns segundos, Roman observou em silêncio as peças. E foi, precisamente, naquele momento que tudo mudou.
Roman, uma criança ucraniana, de apenas 10 anos, obrigada a correr meio mundo de mala às costas por uma guerra de adultos que não compreende – e quem o pode censurar? –, recuperaria, em apenas um segundo, o brilho nos olhos e o sorriso no rosto que perderam na semana anterior. “One, two, three. Xeque-mate!”. As peças voaram diante dos presentes, para espanto geral. A solução estava encontrada.
Roman confirmou, logo naquele momento, ter um talento invulgar para jogar xadrez. Os treinadores colocaram-no à prova naquela tarde/noite. Peões, bispos, cavalos e torres; rainha e rei. Roman dominava como ninguém a língua que, há séculos, serve para travar combates sobre o tabuleiro. Um, dois, três triunfos… Agostinho Roxo e Margarida Coimbra não esconderam o espanto. “Comparando com os outros jogadores, podemos afirmar que o Roman tem uma grande força de jogo. Com o pouco tempo de xadrez que tem, tendo em conta a evolução que já teve, podemos colocá-lo como um dos melhores jogadores de xadrez em Portugal no seu escalão… e não só”, descreve Agostinho Roxo, com um sorriso.
O Roman tem uma grande força de jogo (…) tendo em conta a evolução que já teve, podemos colocá-lo como um dos melhores jogadores de xadrez em Portugal no seu escalão… e não só
Agostinho roxo
Logo no dia seguinte, Roman sentar-se-ia diante do tabuleiro para participar no Campeonato de Lisboa de sub-10. Com as pulsações ainda aceleradas pelos acontecimentos das horas anteriores, no final daquele fim-de-semana a criança ucraniana, na altura com apenas 9 anos, arrecadaria o estatuto de vice-campeão regional de sub-10 (uma vez que a nacionalidade estrangeira não lhe permitiu ser declarado campeão formalmente).
Desde essa primeira experiência, Roman continua a somar jogos e torneios em todas as provas do seu escalão e abertas (em que se podem inscrever jogadores de todas as idades). O rendimento mantém-se. Se não ganha, fica lá perto – mesmo quando a sala está cheia de aultos experientes.
Hoje, com os 10 anos já feitos, Roman é já considerado um dos grandes talentos do xadrez em Portugal, capaz de vencer (ou, pelo menos, lutar para vencer) qualquer adversário ou torneio. No currículo, é vice-campeão nacional de sub-10 (individual) e vice-campeão nacional de sub-12 (equipas), pela ART.
Xeque-mate ao presente
Para Roman, o xadrez tornou-se não apenas um jogo, mas o fio condutor que permitiu dar a normalidade possível à nova existência desta família em Portugal. “Foi ótimo para todos. O Roman agora consegue perceber que as pessoas são iguais em todos os países… Agora, também tem amigos portugueses, exatamente como na Ucrânia. E foi o xadrez que permitiu que ele o compreendesse. Hoje, ele faz uma vida normal, como se nunca tivesse saído da Ucrânia. Com a família, com os amigos…. Também gosta de jogar à bola, de jogar ao Uno… Os jogos são universais, não é?”, questiona Olga.
Só por isso, Olga está agora “mais feliz”. Em Portugal, sente-se em casa. “Há dez anos já tinha visitado o país e quando tive oportunidade de vir para cá, não hesitei. Sinto que Portugal tem algo de especial. Sinto-me confortável, segura. Já viajei por muitos países… mas aqui é diferente. As pessoas são muito amigáveis, sempre disponíveis para ajudar. Não são ignorantes, respeitam as crianças e os mais velhos. Respeitam-nos pela nossa condição de refugiados”, afirma.
Licenciada em direito, Olga fechou os sonhos à chave numa gaveta. Para já, tem apenas um objetivo: “Só quero estar com a minha família. Toda! Os meus pais, os meus filhos, o meu marido…”. “Rezo todos os dias que a Ucrânia vença [a guerra], mas o meu único sonho, neste momento, é poder voltar a estar junto com toda a minha família. Seja em que parte do mundo for”.
Até lá, Roman vai fazendo xeque-mate ao presente.