“Quando eu vim para esse mundo/Eu não atinava em nada/Hoje eu sou Gabriela/Gabriela ê meus camaradas. Eu nasci assim eu cresci assim/E sou mesmo assim/Vou ser sempre assim Gabriela/Sempre Gabriela”. É impossível ler estes versos sem os trautear, ora em voz alta ou em pensamento. A Modinha Para Gabriela, com letra de Dorival Caymmi e cantada por Gal Costa abria todas as noites, de segunda a sexta-feira, cada novo episódio de Gabriela, a primeira telenovela a ser exibida em Portugal.
Esta obra de ficção brasileira, adaptada para televisão por Walter George Durst, a partir do romance Gabriela, Cravo e Canela (1958), de Jorge Amado, foi criada, em 1975, para assinalar os dez anos da TV Globo, e marcou o ano de 1977 em Portugal, com a sua estreia a 16 de maio.
Um ano depois de Gabriela se ter estreado no Brasil, Carlos Cruz, na altura diretor de programas da RTP, viajou até ao Rio de Janeiro para perceber melhor todo o projeto de ficção da telenovela da Globo, concretizando depois a sua compra.
À época, nem todas as casas tinham um ou mais televisores espalhados pelas divisões – estima-se que existissem 150 aparelhos por cada mil habitantes – e por causa disso eram muitas as pessoas que iam para locais públicos, como cafés e coletividades, para assistir à novela, que por cá chegou a atingir o pico de quatro milhões de telespectadores.
Vista ainda a preto e branco – pois a cor só chegaria à RTP, em 1980, na gala do Festival da Canção – a novela protagonizada por Sônia Braga, hoje com 71 anos, tornou-se um fenómeno sociológico. Gabriela era sinónimo de Sônia Braga e vice-versa.
Com 25 anos e uma curta carreira de sete, a atriz natural do Paraná tornou-se um sex symbol mundial. O seu corpo, o cabelo, as roupas, a forma de falar, olhar e sorrir eram exemplos de sensualidade e sedução.
A história da jovem que fugiu para os Ilhéus deixando a vida calma do nordeste e se apaixonou por um estrangeiro que não aceitava o seu comportamento, passava-se em 1925, numa terra dominada pelos poderosos fazendeiros de cacau.
Abordar temas como a sexualidade, mas também a política e o coronelismo, além de questões menos exploradas, como a igualdade de direitos, os direitos das mulheres, a violência doméstica ou luta contra o autoritarismo, tão em voga neste século XXI, marcaram toda aquela época.
Três anos após a Revolução do 25 de Abril, que pôs fim a quatro décadas de ditadura, comandada por António de Oliveira Salazar, e com o I Governo Constitucional (1976-1978) liderado por Mário Soares, sem uma única mulher entre os 17 ministros, era a oportunidade de, além da imagem de uma mulher mais livre, sobretudo física e sexualmente, com uma linguagem deveras diferente e mais arrojada da que as portuguesas se expressavam, ver um exemplo de libertação e de como o prazer era vivido no feminino.
Também a classe artística, atores e atrizes, criadores e técnicos, descobriu uma nova forma de trabalhar a ficção – daí a cinco anos, estreava Vila Faia, a primeira telenovela portuguesa.
Por cá, nem só o povo parava para assistir à telenovela. Fenómeno transversal a todas as classes sociais e faixas etárias, Gabriela ficou célebre por ser a causa de adiamentos, por uma hora, das sessões parlamentares para que os deputados não perdessem um episódio.
Em agosto de 1977, Mário Dionísio escrevia numa crónica publicada no semanário O Jornal: “[Só a Gabriela] realiza o milagre de juntar toda a gente, à mesma hora (incluindo os que consideram o PS o partido mais esquerdista deste mundo e do outro), em frente do televisor e, pelos vistos, por mais que isso nos espante, com sentimentos semelhantes…”.
Seis meses após a estreia, a 16 de novembro, era exibido o último episódio e a Assembleia da República interrompeu uma das suas sessões para acompanhar o final.
Antes, em outubro, já o jornal O Estado de São Paulo escrevia: “Gabriela pára Portugal. Até mesmo o líder comunista Álvaro Cunhal e o primeiro-ministro Mário Soares incorporam-se ao silêncio que diariamente, durante 35 minutos, marcam a atenção dos portugueses em torno da novela brasileira Gabriela, baseada no romance de Jorge Amado Gabriela, Cravo e Canela.
Há quem diga, inclusive, que Soares teve o cuidado de esperar que a novela acabasse para aparecer na televisão anunciando as medidas de austeridade do 25 de agosto. E Cunhal apresentou-se há três dias num programa televisado explicando que se havia atrasado porque “não pôde afastar-se do televisor e deixar de ver a novela”.
A transmissão provoca uma série de problemas ao paralisar quase todo o país. Um cinema começou a publicar o seguinte aviso: ‘Venha ver Gabriela em nosso próprio televisor antes de começar o filme’. Todos compram os discos com a trilha sonora da novela, surge uma moda Gabriela de camisas e um tipo de sapatos inspirado na história. O jornal A Capital publica todos os dias o resumo do capítulo anterior e, além disso, o seriado que agora se encontra em seu centésimo episódio começou a ser exibido desde o princípio, outra vez, no segundo canal de televisão.”
Memórias de um tempo em que as mulheres começavam a ganhar terreno numa sociedade ainda avessa a todas as liberdades.