“Temos de falar.” Só de ouvir esta expressão, o coração dispara, é-se invadido por uma sensação inespecífica de mal-estar e a tendência é fazer de conta que não se ouviu, adiar ou desvalorizar: “Sim… depois vemos isso”. Noutros casos, é provável que se vire costas ou se enfrente a ameaça potencial daquela frase com um ataque (por vezes, é a melhor defesa, costuma dizer-se): “Esquece, não há nada para falar” ou o redondo “não”, que pode nem ser verbalizado, bastando um olhar, um bater de porta, o precipitar-se para uma atividade que esteja à mão (não raras vezes, até pode ser valer-se, intencionalmente, dos auriculares / auscultadores).
Não “temos”, mas seria bom falar da coisa – seja qual for a divergência ou mal-estar – sem impô-la e, idealmente, sem ser na presença de terceiros, à hora de dormir ou se a situação for crítica ao ponto de ser preciso esfriar a cabeça para não se arrepender depois das impensadas investidas do cérebro primitivo. Tudo isto parece mais ou menos óbvio e redundante, mas vendo mais de perto, boa parte dos cortes de relações ou do afastamento de amigos, casais e familiares começa na incapacidade de… bem discutir.
As “nossas” diferenças
Ao contrário do que muitas vezes se pensa, não ter conflitos com as pessoas que fazem parte do nosso quotidiano pode ser indicador de um problema sério: a incapacidade de estabelecer relacionamentos autênticos e próximos. Se evita expressar a sua perspetiva sobre algum assunto por não corresponder ao que outros esperam, por recear contribuir para um clima pouco harmonioso ou temer ser alvo de rejeição, isso é um mau começo. Primeiro, porque na ausência de informação acerca do que pode não estar a correr da melhor maneira, a situação desagradável tende a perpetuar-se, sem que nada mude, ou mude, mas para pior. Depois, se “duas ou mais cabeças pensam melhor do que uma”, fica vedada a possibilidade de “fazer-se luz” e de haver uma real hipótese de a relação passar para um outro nível de entendimento, ou de crescimento.
É disto que falam os estudos em ciências sociais. A investigação longitudinal liderada pelo psicólogo americano Ernest Harburg, sobre a gestão da zanga conjugal e seu impacto na saúde, envolvendo duas centenas de casais, mostrou que a repressão de emoções, como a raiva, contribuiu para o aumento do risco de morte prematura dos cônjuges. Num estudo mais recente, com perto de mil adultos, chegou-se à conclusão de que os casais que discutiam abertamente e de forma honesta aumentavam em 10 vezes a probabilidade de terem um relacionamento satisfatório, comparativamente aos que adotavam a chamada “política da avestruz”, acreditando que, com isso, estariam a fazer o melhor: evitar discussões.
Da discussão nasce a luz
Sendo certo que “quem ama, cuida”, também o é que “quem não sente não é filho de boa gente”, ou seja, as discussões devem constar no menu dos relacionamentos significativos, mais não seja porque a imaginação pode tomar o lugar da dúvida e da falta de atualização face a um assunto que incomoda. Até pode ser um detalhe trivial mas, se nunca o revelar, criar histórias e equívocos na cabeça de uma ou de ambas as partes.
A tese é corroborada pelo cientista social empresarial americano Joseph Grenny, best-seller do New York Times e co-autor do livro Crucial Conversations. Numa das palestras sobre o tema, o psicólogo afirma que as conversas difíceis são uma oportunidade para limar arestas e evitar frustrações e longos silêncios. Conclusão: as pessoas erguem defesas, sem ganhos para ninguém. O que fazer? “Assumir a responsabilidade pelas nossas emoções e pelas histórias que dizemos a nós mesmos.”
Em teoria, trata-se de lutar com verdade, confiando que da discussão nasce a luz. Na prática, o amor – ou aquela amizade sólida – dá trabalho e requer que sejam cumpridas certas condições, a começar por aquilo que conhecemos sobre nós mesmos e as nossas emoções. Isso é que vai determinar o sucesso da conversa a ter, mais cedo ou mais tarde.
Por tudo e por nada
“Casa que não é ralhada não é governada.” Catarina Lucas, psicóloga especialista em sexologia e terapia de casal e autora de Vida a Dois – Um olhar sobre o casal, as relações e a sexualidade (ed. Influência), vale-se do ditado para reforçar a ideia de que as discussões são essenciais na dinâmica entre pessoas que se conhecem e relacionam com afetos.
“O sucesso de uma discussão depende da forma como se coloca a questão na conversa”, afirma a clínica. O temerário “temos de” pressupõe a existência de um problema, um erro ou algo que se fez de negativo: “A forma como se entra no assunto pode inibir o outro, seja na vida pessoal ou no trabalho, quando o chefe diz, por exemplo, ‘logo à tarde temos de falar’, que ativa logo as defesas, pela perceção de uma ameaça.”
Começando pela natureza dos temas que são o pomo da discórdia, a longevidade da convivência importa. Entre amigos ou parceiros recentes, é expectável que as discussões surjam por coisas sem importância, pois ainda é tudo novo e a precisar de acerto. O mesmo não se aplica a situações em que cada um já está a par das singularidades do outro. Aí, faz sentido deixar cair discussões corriqueiras e dispensáveis, e tolerar ou aceitar aspetos da personalidade da pessoa de quem se gosta ou por quem se tem estima.
As questões mais comuns que chegam ao gabinete de consulta são da esfera doméstica, familiar e que envolvem as famílias de origem. A psicóloga adianta: “As discussões mais frequentes tendem a centrar-se na divisão de tarefas, na gestão das rotinas familiares – sobretudo se há filhos ou familiares a cargo – e, ainda, em torno dos sogros ou outros membros da família, com destaque para as dos ex, quando se trata de famílias recompostas.”
Entre as dificuldades evidenciadas pelas partes desavindas, é de sublinhar as dificuldades individuais, que comprometem a interação: “Há pessoas que se queixam de não conseguir debater assuntos porque a outra pessoa começa a chorar, outras lamentam que haja cobrança em vez de uma conversa, ou que venham à baila argumentos passados, o clássico ‘porque tu’ e a réplica ‘porque tu também’.” Tais dificuldades podem ser ultrapassadas com bom senso (e psicoterapia, se necessário).
A arte de bem discutir
As férias e a sexualidade são dois temas que costumam dar azo a discussões inflamadas. Catarina Lucas esclarece: “Divergem sobre o ir ou não ir – ‘não consigo tirar férias por causa dele(a)’ -, sobre se vão, ou não, os pais / sogros e acerca do tempo disponível só para o casal.” Quanto ao sexo, “ainda é um tabu e, nos relacionamentos estáveis, o tema da frequência da atividade sexual nem sempre é falado, até se tornar um problema; nesses casos, a abordagem direta é a solução.”
Em qualquer dos casos, há formas de melhorar a comunicação para levar uma conversa a bom porto. A especialista destaca a necessidade de “ter privacidade e tempo para falar, evitando ficar com a conversa a meio ou ter de interrompê-la” e de “estar calmo e sem reatividade”, sob pena de a conversa descambar ou nem chegar a acontecer.
Uma vez que o tema tenha espaço para surgir, até mesmo durante as rotinas do dia, “e sem ser em piloto automático”, tudo muda, uma vez que se gera alívio e deixa de haver algo escondido, de que se foge: “Depois de uma pessoa se ouvir a falar do que a perturba e de expressar-se diante da outra, já não se pode dizer que a questão não existe e é possível, a partir daí, atuar sobre ela, de forma fluida.”
Os estudos em terapia de casal e familiar sugerem que no casal, na família ou num grupo de amigos, é fundamental que cada um saiba ouvir e consiga expressar-se na primeira pessoa (sem apontar o dedo, portanto), com factos, abertamente e no momento que lhe parecer mais oportuno, sem hesitações, silêncios prolongados ou discursos inflamados. O que deve ficar à porta: as cobranças, os julgamentos, a impulsividade, as palavras em tom ofensivo ou agressivo e a ruminação mental.
Experimentar e manter um registo que funcionou pode fazer a diferença na evolução das ligações afetivas que se valorizam e se deseja preservar. Envolver-se nelas com uma dose q.b. de verdade, de amor e com uma discussão ou outra à mistura, é a via para uma convivência estimulante e satisfatória.