Namoros, uniões de facto e, até, os contratos firmados para a vida não são imunes aquilo que vulgarmente designamos de “prazo de validade”. Sabemos que não há garantias, que os livros de instruções não servem a todos – se é que não baralham ainda mais quem procura receitas para obter e manter a felicidade – e que o fator sorte ajuda. Contudo, também sabemos, ou deveríamos contar com isso à cabeça, que na hora de ir a jogo e manter-se em campo só podemos controlar as nossas decisões e atitudes. Mais importante ainda, são justamente aqueles detalhes a que não damos valor que, mais cedo ou mais tarde, costumam fazer mossa e levar-nos a descarrilar, pondo fim a um caminho que até estava a correr tão bem.
Os estudos nesta área têm vindo a mostrar que sem inteligência emocional não se vai longe, sobretudo depois dos tempos idílicos em que se acha graça aquelas singularidades que, mais tarde, se convertem em defeitos tão enervantes ao ponto de qualquer um dos apaixonados de ontem não conseguir olhar para a cara do outro sem ficar ao rubro.
Após quatro décadas a estudar o comportamento de casais para descobrir o que faz deles uma dupla de sucesso – ou destinada a fracassar – o psicólogo americano John Gottman, especialista mundial no estudo das relações amorosas, encontrou quatro fatores psicológicos que podem “matar” um relacionamento promissor e abrir a porta ao divórcio. Numa provocadora alusão à Bíblia, usou a analogia dos “Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse” – a Peste, a Guerra, a Fome e a Morte – para trazer à cena os “vilões” do enredo amoroso: a Crítica, o Desprezo, a Defensividade e a Indiferença (ou distanciamento emocional).
Dos muitos estudos que se seguiram, destaca-se o de Melissa McNelis e Chris Segrin, publicado há três anos no Journal of Divorce & Remarriage. A investigadora em comunicação e o cientista comportamental estudaram o impacto dos vínculos inseguros na saúde dos relacionamentos românticos numa amostra de 413 adultos americanos (56% mulheres e 44% homens), maioritariamente heterossexuais e concluíram que os participantes com um estilo de vinculação ansiosa ou evitante eram mais propensos ao divórcio. Enquanto os primeiros, demasiado conscientes das reações dos outros, tendem a experimentar mais situações de conflito, os segundos veem a sua vida ainda mais complicada por lidarem com as dificuldades adotando uma autonomia extrema e fazendo uso da distância emocional.
Dos quatro fatores de Gottman, a crítica e o desprezo são os “cavaleiros” que tendem a causar mais estragos. Outro dado curioso: os participantes solteiros e divorciados registaram níveis mais reduzidos da “crítica”, quando comparados com os que não tinham antecedentes de divórcio, algo que os autores do estudo atribuem às lições aprendidas, depois de terem passado por uma ou mais ruturas sentimentais.
O ‘bom’ casamento
O que hoje se sabe sobre os preditores de sucesso é que um relacionamento à prova de embates passa pelo “desequilíbrio” saudável entre as interações positivas e as negativas, ou seja, as primeiras terão de estar em vantagem, não só por a elas se dever a satisfação com o par, como porque permitem amortecer o efeito destrutivo das outras.
Embora as divergências, as fases de aproximação e de afastamento e as discussões façam parte, o segredo para um casal “em forma” está na maneira como elas se processam. O modelo do Gottman Institute refere que a justa proporção é de cinco interações positivas para uma negativa, chegando mesmo a admitir que, dos quatro inimigos dos relacionamentos íntimos, o desprezo é o pior de todos, sendo o primeiro preditor de divórcio nos primeiros seis anos de casamento.
Por outro lado, os prejuízos da indiferença – ou, numa versão do distanciamento emocional, o “tratamento silencioso” (não dar cavaco, intencionalmente) – são dos mais difíceis de sarar. Em qualquer dos casos, só quando estes quatro “Cavaleiros” fazem uma visita esporádica é que o desgaste e a toxicidade não chegam a instalar-se.
Os quatro inimigos de um bom casamento: a Crítica, o Desprezo, a Defensividade e a Indiferença (ou distanciamento emocional)
Curiosamente, ao monitorizar as respostas fisiológicas dos participantes de um dos seus estudos, a equipa do Love Lab – que mais tarde deu lugar ao Gottman Institute – descobriu que este mecanismo de defesa podia ser facilmente desbloqueado quando, numa discussão acesa, os oponentes tinham a oportunidade de se recentrar e regular emoções (isto percebe-se, na medida em que, após um dia complicado, em que um ou ambos já gastaram reservas de paciência, acabem exaltados ou erguem um ‘muro’ comunicacional para se proteger).
Ao interromperem deliberadamente casais após 15 minutos discussão, a pretexto de questões técnicas, e sugerindo que cada uma das partes que, durante meia hora, não tocasse no assunto e fizesse outra coisa, verificaram que a taxa de batimentos cardíacos era menor e lhes permitia ter um desfecho mais produtivo.
Nas sessões de terapia de casal – que tem uma versão intensiva intitulada “Maratona de Casais” – os participantes são convidados a abordar aspetos positivos e desconfortáveis do seu percurso, a dois e individual, além de identificarem necessidades e sentimentos, sendo desafiados a estabelecer pontes entre si.
No final, é esperado que saiam do processo com os quatro antídotos dos “Cavaleiros do Apocalipse” (ou “profetas da desgraça”) na ponta da língua, introduzindo uma nova dinâmica na vida a dois: falar na primeira pessoa e com uma linguagem não verbal a condizer, valorizar as qualidades do outro quando se dirigem a ele em situações de desacordo ou desagrado, assumir a sua parte na identificação do problema em vez de fazerem parte dele (manipulação, culpabilização, vitimização, etc) e saberem sinalizar ao outro quando precisam de esfriar a cabeça antes que o caldo entorne à séria. Tudo isto envolve o treino de competências de comunicação por tentativa e erro, e a noção de que ambos estão no mesmo barco.
E resulta?
Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), no ano em que começou a pandemia, registou-se uma quebra de 43% no número de casamentos realizados face ao ano anterior e um decréscimo de 15% dos divórcios relativamente a 2019. Os dados do Ministério da Justiça confirmam a trajetória descendente do número de dissoluções matrimoniais: em 2019 registaram-se 15 947 divórcios, em 2020 foram 13 428 e, no final do ano passado, ficaram-se pelos 13 215. Com menos gente a decidir por termo à relação conjugal, a terapia de casal apresenta-se como uma opção na hora de situações de crise e, se existirem recursos emocionais parte a parte, resgatar a saúde e o bem-estar a dois.
“Para muitos, as restrições sanitárias impostas nos últimos dois anos foram uma oportunidade para resolver coisas que não estavam bem; outros sentiram dificuldades acrescidas, que agora voltam, mas associadas à guerra e ao aumento do custo de vida.” A afirmação é do psicólogo e terapeuta de casal Fernando Mesquita, que é também sexólogo e autor de livros como Aprender a Amar e Deuses Caídos. Quando chegam, ou já os leram, ou acabam por chegar a eles por sugestão do clínico, funcionando como um complemento das sessões.
“A maioria dos casais que recebo tem entre 30 e 50 anos, mas varia muito”, observa. A primeira coisa que descobrem, se não a sabem já, é que “a terapia de casal não é só para salvar casamentos”, ou seja, apesar de mais de metade conseguir resolver o problema com que chegou, há sempre o risco de não funcionar. Basta que uma das partes já venha com a decisão tomada e tenha tendência a envolver-se menos, por exemplo, ou que ambos cheguem à conclusão que os esforços de restaurar o relacionamento estão a dar pouco ou nenhuns frutos, dado o desgaste envolvido.
Nos casais heterossexuais, são geralmente as mulheres que dão o primeiro passo: “Ainda existe resistência por parte dos homens; alguns fazem-no por arrasto, mas vêm à consulta”, esclarece. Em três ou quatro sessões, com prescrição de exercícios para fazerem em casa, é possível ficar com uma ideia de como estão a evoluir ou não, como sucede quando o casal está com um pé dentro e outro fora, por exemplo, não fazendo trabalho de casa entre sessões. “Em cerca de 30 a 35% dos casos, não chegam a concluir o processo; entre as causas mais comuns apresentadas, a falta de tempo ou a indisponibilidade para o processo terapêutico”.
Problemas comuns, soluções à vista
As queixas de natureza sexual fazem parte do menu. Em comum, a falta de desejo e questões relacionais que não seriam problemáticas se fossem faladas no início da relação, sem dar azo a equívocos: “Quando se dá uma imagem de si que não corresponde ao real, pode ser mais difícil, com o passar dos anos, partilhar fantasias e desejos.”
Estes desencontros do desejo resultam, em parte, de preconceitos e tabus acerca do que é esperado de cada um. Partindo da sua experiência clínica, Fernando Mesquita avança uma hipótese: “Eles já não se sentem obrigados a corresponder ao mito do ‘sempre pronto’ e elas são hoje mais livres para explorar novos caminhos, o que não impede que, por vezes, eles se sintam ameaçados na sua masculinidade, questionando se serão tão bons como outros homens.”
Se estão muito cansados e não têm tempo durante a semana, lembro que por vezes também não temos vontade de ir trabalhar e vamos
Fernando Mesquita, psicólogo clínico, terapeuta de casal e sexólogo
Virar-se para os prazeres adultos – pornografia, brinquedos sexuais – mas em registo solitário, e raramente a dois, pode não ser a melhor estratégia. “Se estão muito cansados e não têm tempo durante a semana, lembro que por vezes também não temos vontade de ir trabalhar e vamos”, sugere, tornando claro que a relação não se mantém sozinha, requer investimento e compromisso.
Quando as queixas se centram em torno da comunicação, elas envolvem, muitas vezes, “aspetos da personalidade e quadros ansiosos e depressivos que afetam a intimidade”.
Nas sessões de terapia de casal, abordam-se os aspetos positivos e desconfortáveis do percurso conjugal e identificam-se as necessidades e os sentimentos de cada um
Nos casos em que a terapia é bem sucedida, tal significa que o esforço compensou, quer pelos exercício que treinam a capacidade de lidar com o conflito sem menorizar o outro, quer pela mudança de foco (o “nós” e não apenas o “tu” ou o “eu” e no que faz o casal continuar a achar que vale a pena), quer pela reaprendizagem de coisas tão simples como o apreço pelas qualidades do outro e a honestidade de cada um face ao que sente.
O reajuste de expetativas também conta. Assim por exemplo, se antes era costume fazerem uma escapadinha e agora não há orçamento, “pode ser igualmente interessante fazerem coisas perto de casa”, em vez de deixar-se derrotar por uma visão pessimista do futuro, por contraste com o passado. Se há filhos pequenos e a rede de suporte é escassa, além de aproveitar melhor o tempo em que estão com eles, há a possibilidade de, uma vez por outra, contratar os serviços de cuidadores e planear momentos íntimos. E remata: “Ainda há quem pense que se não forem espontâneos, estes momentos não têm valor, mas mais valem esses do que nenhuns.”
Lidar eficazmente com os “4 Cavaleiros do Apocalipse”
De acordo com o modelo de Gottman, remover os obstáculos que minam um relacionamento implica que cada membro do casal valorize o que sente e precisa e desenvolva formas mais saudáveis de expressá-lo. Aqui ficam as quatro fontes de problemas e os antídotos (ou abordagens alternativas) para os resolver
# 1 Crítica
Atacar verbalmente um comportamento ou aspeto da personalidade do outro. Exemplo: “Não tens cuidado nem queres saber, deixas as tuas coisas espalhadas pela casa constantemente e quem vier que limpe”
Antídoto: Falar na primeira pessoa, usando o pronome “eu” em vez de “tu” e de forma positiva (no conteúdo e na forma, ou no tom). “Sinto-me mal a pedir ao filho para arrumar brinquedos se há coisas que não são dele espalhadas no chão”
# 2 Desprezo
Usar a ironia, insultos, piadas de gosto duvidoso ou adotar expressões hostis (revirar os olhos, por exemplo) é uma via rápida para impedir o diálogo e promover o afastamento. Exemplo: “É uma falta de noção! Queres lá saber se acordo quando te deitas tarde e acendes a luz”
Antídoto: Experimentar amortecer sentimentos negativos mostrando apreço pelo que funciona bem e valorizando o outro quando lhe pede algo. “Vejo que tens trabalhado muito; amanhã tenho reunião cedo e agradeço muito se acenderes a luz do corredor em vez da do quarto, caso precises de fazer serão”
# 3 Defensividade
Um mecanismo comum quando se está sob stresse, reagindo a ameaças ou críticas que se antecipam, com recurso à manipulação e à negação ou fazendo o outro sentir-se culpado. Exemplo: “Se vais ignorar, como sempre, que é a tua vez de mudar a liteira do gato, ficas a saber que desta vez não vou fechar os olhos e continuar a fazer tudo como se nada fosse”
Antídoto: Aceitar a sua parte na questão que está na base do conflito, em vez de, por exemplo, antecipar-se ao outro e atirar-lhe à cara, a seguir, aquilo que fez na vez dele. “Vou agora para a sala e espero por ti para vermos juntos o episódio da a série que combinamos. Sem pressas!”
# 4 Desligar
Erguer um “muro” ao outro porque não se sente disponível e só quer sossego. Resistir à interação e reprimir emoções tende a criar o efeito de “panela de pressão” entre ambos. Exemplo: “Esquece. Não quero estar sempre a bater na mesma tecla”
Antídoto: Acalmar-se. Uma pausa solicitada a tempo produz resultados inesperados, para melhor, evitando que o clima tenso resulte numa grande discussão por coisa pouca. “Quero dar-te a devida atenção mas vou precisar de alguns minutos de sossego para acalmar a cabeça primeiro e já conversamos”