“O inferno são os outros.” Pelo menos uma vez na vida, já fizemos nossas as palavras do filósofo existencialista francês Jean-Paul Sartre. Seja porque alguém nos magoou ou por termos sido nós a fazê-lo e saímos de cena para não ter de lidar com isso. O problema é quando isso diz mais de nós do que estamos prontos a admitir. No seu melhor, revela fraquezas humanas. No pior, mais raro, sugere facetas negras da personalidade, como sugere uma investigação recente da Universidade de Pádua, em Itália, divulgada no jornal Daily Mail e liderada pelo psicólogo social Peter Jonason, que aplica a teoria evolucionista ao estudo das diferenças individuais e estratégias de namoro.
O estudo pretendia avaliar se a Tríade Negra da personalidade, que envolve os traços de maquiavelismo (ausência de moral, manipulação dos outros), psicopatia (conduta antissocial, insensível e sem remorso) e narcisismo (egoísmo e grandiosidade) era uma resposta adaptativa no campo dos jogos amorosos. A equipa de investigadores entrevistou 341 adultos norte-americanos (25% eram do sexo masculino) sobre o comportamento de ghosting – sair de um envolvimento afetivo e sexual sem dar satisfações nem deixar rasto – e pediu-lhes para preencher um questionário que media os traços da Tríade.
Os resultados indicaram que o corte abrupto do envolvimento era mais provável nos interessados em sexo casual ou com baixo investimento romântico e mais de metade da amostra (51%) admitiu tê-lo feito. Quem obteve pontuações mais elevadas nos traços de personalidade da Tríade Negra tendia a achar esse comportamento aceitável para terminar relacionamentos de curta duração, mas não para compromissos mais sérios, com maior expressão nos homens. Conclusão: quem tem níveis elevados de psicopatia e narcisismo vê no ghosting uma solução eficaz e de baixo custo para livrar-se de parceiros e ficar disponível para outras oportunidades amorosas ou, simplesmente, uma forma de evitar compromissos desejados. Mas será que tudo se resume, nos caminhos do amor, a uma abordagem evolucionista, onde impera a lei do mais forte num ambiente competitivo que favorece estratégias de sedução rápida e sequencial?
Presos por fios
Se há algumas décadas era preferível “despachar” um romance através de mensagens de texto, evitando o desconfortável e comprometedor face-a-face, agora há mais possibilidades de aparecer, explorar e dar continuidade aos encontros iniciados e, talvez por isso, ignorar e bloquear o par fazendo ‘bypass’ de conversas difíceis se faça sentir com mais estrondo. Deixar de dar sinal é algo que acontece em múltiplas frentes, amplificando o impacto da ausência, pelo bloqueio das vias de acesso disponíveis e, por vezes, com consequências preocupantes.
Quem fica à espera de resposta por tempo indefinido tende, legitimamente, a interrogar-se: “O que fiz eu para merecer isto?” Ficar no limbo, tomado de assalto por emoções negativas – perplexidade, indignação, desilusão e revolta – é apenas o início da jornada rumo à aceitação de uma realidade outrora impensável: ter sido enganado, negligenciado e ultrajado de forma silenciosa. Acontece aos melhores, e nem os famosos escapam. Há dois anos, a cantora e compositora norte-americana Katy Perry, que foi alvo de ghosting por, nada mais, nada menos, do que o seu próprio marido. Dois anos depois de dar o nó com o humorista e ator inglês Russell Brand, foi confrontada com um pedido de divórcio por SMS e, desde então, deixou de estar contactável, revelou ao Daily Telegraph, o que a deixou triste, confusa e humilhada.
O termo “ghosting” surgiu no início deste século, mas só há seis anos é que o fenómeno de desaparecer da vida de alguém sem por um ponto final na relação amorosa se generalizou nos media devido, em parte, às revelações feitas por figuras célebres que passaram pela experiência. Desengane-se quem pensa que o “vilão” é sempre masculino. Que o diga uma estrela de Hollywood, presente nas fantasias da sua legião de fãs. Corria o ano de 2011 quando Leonardo DiCaprio se envolveu durante alguns meses com Blake Lively (conhecida pela personagem Serena, da série Gossip Girl), nunca imaginando que iria ficar “a ver navios” após o encontro que a atriz teve com o futuro marido, Ryan Reynolds, como este confirmou à imprensa. Fazendo jus à máxima “quem vai à guerra dá e leva”, o relato de outro famoso ao New York Times, há uma década (estas coisas não são de agora), o rapper Drake confessou ter passado um mau bocado quando a cantora e empresária Rihanna fez com ele o que ele fazia às mulheres que passaram na sua vida, “partilhar um tempo de qualidade e desaparecer”.
Assombrados e fantasmas
Fátima M., 35 anos, nunca apreciou ditados do tipo “gato escaldado, de água fria tem medo” até ao dia em que ele lhe saiu da boca durante uma conversa acalorada com o namorado. “Eu sabia que ele ia estar com amigos depois do jogo e ficou de dar sinal para irmos de fim-de-semana”, recorda. Ao chegar mais tarde do que era suposto, encontrou Fátima num pranto. De pouco serviu explicar-lhe que a bateria do telemóvel chegou ao fim quando estava a caminho de casa e que, após um acidente de viação ligeiro, ficou impedido de ligar-lhe por não ter o número dela de cor. “Senti-me insegura e quase entrei em pânico.”
Por acaso, ou talvez não, a relação tinha dois meses e, naquela noite, Fátima lembrou-se do ex que, após dois meses, a deixou à espera, em casa, mas nunca chegou a aparecer como havia combinado. Nem então nem depois. “Literalmente, ele apagou-me da vida dele e nunca lhe perdoei a dor que isso me causou”, lamenta. Seguiram-se noites em claro e dias de ruminação. À espera. À toa. “Foi como levar um murro no estômago sem saber de onde vinha o golpe e, sobretudo, porquê.” As observações bem intencionadas dos amigos – “o idiota não te merecia”, “ainda bem que não perdeste muito tempo”, “homens há muitos” – caíram em saco roto. Ela queria aquele homem e ele descartou-a, “qual roupa velha que nem para doar serve e vai fora”. Ainda hoje, quando pensa nisso, Fátima sente um profundo embaraço, ao ponto de não mencionar o assunto ao atual namorado, até aquela noite. Nada a levou a suspeitar que o extinto romance haveria de esfumar-se. Tinham-se conhecido online, “através de amigos de amigos” e marcaram encontro alguns dias depois de trocar mensagens, de texto e de voz, e de partilharem fotos e vídeos.
Um mês depois, tudo corria de feição: “Tínhamos gostos musicais e alimentares semelhantes, havia química, ele levava-me a casa quando fazíamos saídas à noite e às vezes ficava lá.” Porém, Fátima nunca lhe conheceu amigos ou familiares e ele também não parecia interessado em conhecer os dela. O pior veio depois: “Foi duro aceitar que ele não ia responder aos meus telefonemas e mensagens, que me bloqueou nas redes sociais e que eu não podia fazer nada acerca disso.” Precisou de algumas sessões de terapia para perceber que o problema não era ela, embora tenha fechado os olhos a pequenas incoerências, na “cegueira” da paixão. Um ano depois, confrontada com a ausência imprevista do novo amor, deu por si assombrada pelo fantasma do ex e com medo de passar por tudo aquilo outra vez.
Fátima nunca chegou a saber se aquele homem fugiu por incapacidade de lidar com um segredo, por facilitismo ou falta de escrúpulos, mas qualquer destas opções é possível. Num texto publicado no site Medium, um ‘serial ghoster’ confessa-se: “Eu desapareço porque te amo.” Entre as considerações feitas na primeira pessoa, o quão assustador pode ser um certo grau de intimidade, ou o que ela representa: a sensação de invasão, de proximidade excessiva, o ter de lidar com as expetativas do outro, com as coisas que o preocupam e que não se quer encarar. Ou se quer mas sabe-se que não se consegue, pelo menos por muito tempo. Ergue-se um muro, ficando invisível, incontactável. “Quando as coisas melhoram eu volto, com o coração na mão, e deixo-te falar sobre ti, em parte porque me sinto mal pelo que fiz, mas também por não querer falar sobre mim.” E quando chega a pergunta “Então, como estás?”, virá a mentira descarada – “Oh, eu? Estou bem” – para não revelar o cansaço inexplicável de não conseguir ser ‘normal’, e de como lamento não ser assim. Em síntese: nem toda a rejeição ou abandono é motivada por traços obscuros de personalidade, ou melhor, alguns fantasmas também sofrem. .
Mergulhar nas áreas sombra
Na mente da vítima e do vilão, há espaço para muitas nuances. Cláudia Morais é psicóloga e terapeuta familiar. Ao seu consultório chegam pessoas com problemas que não conseguem compreender e um deles é o ghosting, seja vivido na pele de quem parte sem explicação ou do outro, que fica devastado (umas vezes mais, outras nem tanto). “O ghosting está associado à mentira; muitas vezes existe uma vida dupla e a pessoa que a tem não consegue falar disso abertamente; outras vezes não toleram aspetos do outro que sentem como invasivos, assustadores e sufocantes, mesmo que não o sejam.” Nestes casos, tendem a evitar o conflito e a intimidade, havendo propensão para um “estilo de vinculação evitante”, em termos de personalidade. Por isso desaparecem de cena. No outro extremo, a pessoa que é abandonada tende a ter uma personalidade ansiosa, o que contribui para que o outro se afaste. Trata-se de mecanismos de defesa que acontecem nos relacionamentos e não têm de culminar em ghosting. De resto, ele “representa uma pequena parte dos problemas que aparecem nas consultas”.
Outro aspeto a ter em conta é o grau em que a experiência afeta as pessoas. Quando se conhece alguém online, numa app, por exemplo, e se trocam mensagens românticas ou sexuais, “os níveis de empatia são menores e divide-se a atenção com outros potenciais candidatos”. Dito de outro modo, “está-se mais exposto, embora não disposto, a estes fenómenos, em que é mais fácil instrumentalizar ou desvincular-se, por não existir uma relação de compromisso”. O caso muda de figura quando se tem um encontro presencial, que acaba por ser “um autoteste, já que as pessoas ficam mais atentas ao que sentem diante de alguém face-a-face, se sentem ou não atração ou interesse”. Se uma das partes não sentir o que esperava, é legítimo que use a segurança que o digital oferece para revelar isso mesmo, após o encontro. “Quando escolhe não o fazer e bloqueia a seguir, está a descartar alguém que tem uma forma física, um rosto, e não é só a personagem digital, o que é revelador do valor de quem o faz.”
Se isto é ou não traumático, vai depender da auto-estima de cada um e da bagagem, mais ou menos pesada, que traz. “Se o meu valor não for tão claro para mim, se fui alvo de rejeição antes e cresci com a sensação de não merecer amor, pode ser mais difícil de ultrapassar”. Cláudia Morais admite que possa levar algum tempo para processar, numa psicoterapia, acontecimentos recentes de uma forma mais realista, mas “não é fácil nem simples”.
Estar no avesso desta camisola também tem os seus espinhos. “Já tive pedidos de terapia individual por parte de pessoas que reconhecem não ser capazes de manter um nível de intimidade”. Porém, pode ser difícil serem ajudados, na medida em que “a terapia implica uma exposição gradual e requer um compromisso”. A partir de certo ponto, “ativam os mecanismos de defesa que dificultam, ou impedem, a manutenção da aliança terapêutica.”
Todos temos os nossos infernos privados, portanto. O segredo está na consciência disso e das escolhas que podemos aprender a fazer, para que a vida seja menos infernal. No amor e nas outras áreas da vida.