As crianças, nas mais variadas faixas etárias, têm sido as menos vulneráveis ao contágio do coronavírus que se alastrou pelo mundo há quase dois anos. No entanto, poderão ser as pessoas que, no futuro, mais sofrerão com os danos colaterais e vitalícios de uma pandemia com elevado grau de letalidade. A contagem diária de novos contágios, mortes, internamentos e recuperados da Covid-19 não pára na maioria dos países – com dados mais fiáveis nuns do que noutros, é certo – mas, há cálculos impressionantes de que não se fala amiúde.
A cada três milhões de mortes há mais de 1,5 milhão de crianças que perderam a mãe, o pai ou o seu cuidador primário, normalmente, os avós. Ora, como já vamos em quase cinco milhões de mortes globais por Covid-19, é seguro que o número de órfãos duplicará. Eis uma contagem que tende a ficar para trás.
Numa estimativa publicada recentemente na revista Pediatrics, entre 1 de abril de 2020 e 30 de junho de 2021, pelo menos 140 mil crianças americanas perderam um dos pais ou cuidador por causa do coronavírus, ou seja, uma em cada 500 crianças perdeu um dos adultos mais importantes das suas vidas. Mas, para Susan Hillis, co-autora do estudo e epidemiologista do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças, o total pode chegar a pelo menos 170 mil.
A probabilidade de as crianças ficarem órfãs não é igual para todas, muda consoante as diferentes raças e etnias: as hispânicas têm quase duas vezes mais probabilidade do que as brancas de perder um cuidador, as negras têm duas vezes mais hipóteses e as indígenas americanas e nativas do Alasca sobe para mais de quatro vezes. Estas desigualdades refletem também as diferentes taxas de mortalidade e de fertilidade nos adultos.
Basta um para ficar sem chão
A UNICEF define orfandade como a morte de um ou de ambos os pais, porque basta o desaparecimento de um dos progenitores para aumentarem os riscos de problemas de saúde mental, abuso, habitação instável e pobreza familiar. Por exemplo, nos Estados Unidos da América, 23% das crianças vivem em famílias monoparentais, com pai solteiro ou mãe solteira. Em todo o mundo, o risco de perder o pai foi duas a cinco vezes mais alto do que o de perder a mãe. Essa diferença poderá ser explicada pelo facto de os homens terem um número médio de filhos maior do que as mulheres, visto poderem ter uma vida reprodutiva até aos 70 anos ou mais e as mulheres, normalmente, interromperem por volta dos 50 anos.
Para as crianças em particular, a morte de um cuidador é tremendamente desestabilizadora. “Essencialmente, quebra as suposições das crianças sobre o mundo quando os seus pais – essas figuras que deveriam dar uma sensação de segurança e proteção e atender às necessidades básicas – morrem”, diz Tashel Bordere, professora de desenvolvimento humano e ciências da família na Universidade de Missouri à publicação The Atlantic. Muitas das crianças que perderam um dos pais durante a pandemia continuarão a morar na mesma casa, mas algumas irão para casa de outro membro da família ou amigo próximo e há ainda os outros, que entrarão no sistema de adoção ou ficarão em situação de sem-abrigo. O facto de a Covid-19 ser uma doença repentina e que em poucos dias ou semanas pode levar à morte, faz com que não haja tempo para se prepararem as crianças para o trauma que podem vir a experienciar.
A sua institucionalização, um recurso comum mesmo quando há um pai vivo, pode provocar atrasos no desenvolvimento e aumento do abuso, com maior risco de sofrer problemas de saúde mental, violência física, emocional e sexual e pobreza familiar. Tudo isto poderá escalar para aumentar os riscos de suicídio, gravidez na adolescência, doenças infecciosas e doenças crónicas.
A importância dos avós
Um estudo à escala global feito pelo Imperial College, do Reino Unido, e publicado na revista científica The Lancet em julho deste ano, deu pistas sobre a gravidade do problema. A metodologia usada – cruzar dados de mortalidade e de fertilidade para modelar estimativas mínimas – permitiu criar uma calculadora dos órfãos da pandemia e, em outubro, os dados foram atualizados e divulgados. “Infelizmente, o aumento de casos e mortes resulta num aumento no número de órfãos. A pandemia invisível da orfandade no mundo terá um sério impacto a longo prazo nas crianças das próximas gerações”, afirmou Juliette Unwin, investigadora da Escola de Saúde do Imperial College e co-autora da pesquisa.
A fotografia panorâmica mostra que pelo menos 1,5 milhões de crianças e adolescentes ficaram órfãos ou perderam avós ou tios durante a pandemia, entre 1 de março de 2020 e 30 de abril de 2021: 1.134 000 crianças sofreram a morte de cuidadores primários (pelo menos um dos pais ou avós com a guarda); 1.562 000 crianças a quem morreu pelo menos um cuidador principal ou secundário.
Nos 21 países analisados para a investigação – e que representam 76,4% das mortes globais por Covid-19 – estima-se que até abril, 862 365 crianças ficaram órfãs ou perderam um dos avós que detinham a sua custódia. Destes, 788 704 crianças ficaram órfãs de mãe, pai ou ambos, com a maioria a perder um dos pais; 73 661 perderam pelo menos um avô com a sua guarda; 355 283 perderam pelo menos um avô co-residente ou parente mais velho.
Vejamos numa análise mais fina o que se passa no mundo. Onde há mais crianças órfãs? Na Europa: Rússia 22 293, Inglaterra e País de Gales 8 495, França 4 064, Itália 3 201, Polónia 3 159, Espanha 2 309, Alemanha 1 590. Em Portugal, 590 crianças e adolescentes terão ficado órfãos, número que ascende a 660 se for incluída a perda de avós que tinham a sua guarda. No resto dos continentes: México 131 325, Índia 116 263, Brasil 113 150, EUA 104 884, África do Sul 82 422.
Os avós são indissociáveis deste flagelo porque há 38% de crianças em todo o mundo a morar em agregados familiares que incluem os seus avós, uma percentagem de quase 50% só na região da Ásia-Pacífico. Apesar de os familiares mais velhos serem os mais vulneráveis à Covid-19, são também frequentemente os que providenciam apoio psicossocial, prático ou financeiro para os seus netos. No Brasil, 70% das crianças recebem esse apoio financeiro; nos EUA, 40% dos avós que moram com os netos são os seus cuidadores principais; no Reino Unido, 40% dos avós fornecem cuidados regulares aos netos; em África e na América Latina, os avós com custódia dos netos, muitas vezes, servem como tutores, cuidando dos netos cujos os pais emigraram para trabalhar, morreram de Sida ou outras doenças, ou estão separados devido a conflito ou guerra.
“Se parar agora e contar até 12, é o tempo suficiente para haver um novo órfão por Covid-19 no mundo”, afirmou Susan Hillis, à BBC News Brasil, a especialista em doenças infecciosas e também ela mãe adotiva de 11 crianças.