Chamo-lhe Layla, nome fictício de uma mulher que, de facto, não existe mas cujas histórias e percursos de vida existem, são brutalmente reais e ilustram os casos de muitas das mulheres com quem me tenho cruzado no Campo de Refugiados de Moria, na ilha grega de Lesbos. Leyla nasceu e viveu em Duma maior parte da sua vida. Após a morte dos seus pais quando tinha apenas 10 anos, foi viver com uma irmã mais velha, que já tinha a sua própria família (marido e dois filhos menores). A infância de Layla não foi, como se pode imaginar, fácil em consequência da ausência dos seus pais e ainda por cima agravadas pelas dificuldades económicas da irmã.
Quando tinha 17 anos, Layla casou com um primo do marido da irmã, um homem que viu pela primeira vez no próprio dia do casamento. No início, a relação entre os dois era positiva, mas, alguns meses depois do casamento, o lado mais controlador e violento do marido começou a ser cada vez mais presente. A violência psicológica e física tornaram-se diárias. Layla praticamente não saia de casa, apenas cuidava da casa e dos dois filhos. Ao fim de nove anos de casamento, Layla não aguentou mais e fugiu de casa. A filha acompanhou a mãe e o filho ficou a viver com o pai e ela nunca mais o viu ou falou com ele, apesar de inúmeras tentativas de o contactar. Sabe apenas que vive fora da Síria.
Depois de sair da casa do seu primeiro marido, Layla voltou para a casa da irmã. Contudo, a relação entre as duas não era a melhor. A irmã não concordava com a separação. Como Layla praticamente não tinha estudado e revelava grandes dificuldades de leitura e de escrita, deparava-se com sérios problemas em encontrar emprego. Passados uns meses, ela conseguiu um trabalho de empregada doméstica de uma família rica, também residente em Duma, que permitiram que ela e a filha vivessem num quarto de serviço anexo.
Dois anos mais tarde, Layla conheceu o homem que viria a ser o seu segundo marido. Ele trabalhava na empresa dos seus patrões. Passado algum tempo, os dois casaram-se e tiveram uma vida feliz, mau grado os problemas que iam surgindo. Em 2011, o marido participou nos grandes protestos contra o regime ditatorial liderado por Bashar Hafez al-Assad em Damasco. Durante uma das manifestações, ele foi detido e, posteriormente, torturado, ficando preso por cerca de 2 anos.
Logo que o marido de Layla saiu da prisão, devido às ameaças de nova detenção ou recrutamento forçado para o exército sírio, o casal teve que passar a viver em situação de quase clandestinidade. Em 2017, devido aos constantes bombardeamentos decorrentes da Guerra Civil com intervenção estrangeira, tiveram de fugir de Duma para o norte da Síria. Uma semana após abandonarem a sua cidade, a casa onde antes moraram foi bombardeada.
A filha de Layla, entretanto já com um filho, decidiu também deixar Duma na mesma altura, mas optou por deixar a Síria em busca de um lugar mais seguro para viver. Em 2018, o marido de Layla foi morto durante um ataque aéreo. Sem saber o que fazer com a sua vida, Layla acabou por ficar a viver mais um ano na Síria, fugindo depois na companhia de vizinhos.
Quando chegaram à fronteira entre a Síria e a Turquia, o autocarro onde vinham foi parado pela polícia turca. Toda a gente estava cheia de medo sobre o que lhes ia acontecer. Os rumores eram muitos. Foram obrigados a sair do autocarro e revistados. Os homens foram agredidos e todos os que chegaram a ser revistados ficaram sem muitos dos seus bens.
Layla conseguiu conservar os documentos e o pouco dinheiro que tinha porque, quando estava quase para ser revistada, apareceu um outro autocarro e o grupo de policias que os estava a roubar foi ocupar-se do novo grupo de pessoas que se aproximava. Enquanto os polícias turcos foram parar o autocarro que chegava, um grupo de cerca de 15 pessoas, incluindo Layla, conseguiram fugir e esconder-se na floresta que existia na zona de fronteira. Caminharam toda a noite.
No final do dia seguinte, o grupo de sírios encontrou uma aldeia. Pensaram que estariam a salvo. Contudo, quando se aproximavam das primeiras casas da localidade, polícias turcos apareceram e detiveram-nos. Todas as pessoas foram imobilizadas — algemados nos pés e nas mãos — e espancadas. Quando terminaram as sevícias, os policias deixaram o grupo à sua sorte. No dia seguinte, decidiram continuar a pé até Izmir, cidade costeira. Uma vez aí, o grupo separou-se. Sozinha e sem saber o que fazer, Layla deambulou pela cidade durante dois dias. Não comeu, não tinha roupa adequada ao frio do mês de Dezembro de 2019. Estava aterrorizada, sentia dores terríveis e sangrava. Ao terceiro dia, sem saber como, encontrou um homem turco que falava árabe e que lhe disse que a podia ajudar a chegar à Grécia.
Sem pensar duas vezes dada a sua situação de desespero, aceitou a proposta e, com o dinheiro que ainda tinha, pagou a “passagem”. O homem apenas lhe disse que, no dia seguinte, ela teria que estar em frente a uma determinada casa junto ao mar por volta das nove horas da noite. O grupo que se formou era constituído por cerca de 30 pessoas. Para muitos, não era a primeira vez que procuravam entrar na Europa. Para Layla, era.
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Como já relatei numa crónica anterior, ao amanhecer, aquele grupo de refugiados chegou a terra depois de terem sido perseguidos pela Guarda Costeira grega. Conseguiram escapar devido à maré baixa e ao facto de se terem aproximado da ilha de Lesbos numa zona rochosa. Evitaram, assim, ser informalmente detidos pelas forças policiais gregas e ilegalmente devolvidos à Turquia. E Layla acabou por chegar ao Campo de Moria.
Depois de ser registada e de ter formalizado um pedido de asilo, foi informada de que a sua entrevista de asilo só deveria ocorrer em 2021, mais de um ano depois. Havia ainda o pedido de reunificação familiar com a filha e o neto, que vivem atualmente em França. O pedido foi ignorado. Como não tinha apoio jurídico, restava-lhe esperar.
Durante meses não teve acesso aos cuidados de saúde de que necessitava e, em consequência dessa negligência, a sua saúde física e mental deteriorou-se. A violenta realidade do campo só piorou com as medidas implementadas em consequência da pandemia. Na noite de 8 para 9 de Setembro de 2020, um incêndio consumiu o Campo de Moria. Layla foi apanhada de surpresa. Conseguiu fugir apenas com a roupa que tinha no corpo e com um pequeno saco onde guardava os seus documentos. Perdeu tudo uma vez mais e foi forçada a ficar na rua praticamente sem acesso a água, comida, casas de banho ou apoio médico.
A 12 de Setembro de 2020, o Governo grego anunciou que o novo Campo de Moria estava pronto. Um dia depois, Layla decidiu e conseguiu entrar, apesar do receio quanto ao que poderia vir a suceder. No início de Outubro de 2020, foi, finalmente, chamada para a entrevista de asilo. Contudo, por ter nacionalidade síria e a Turquia ser classificada pela Grécia como “país seguro” para nacionais da Síria, as autoridades gregas rejeitaram o seu pedido de asilo em Janeiro de 2021. Deverá, na sequência desta decisão, devolvida à Turquia, o que ainda não aconteceu porque, neste momento se encontra à espera da decisão acerca do recurso que apresentou.
Será a decisão inicial alterada? É aceitável que esta seja, quase sempre, a postura da União Europeia e dos seus Estados-Membros?
Recorde crónicas anteriores da mesma autora