Sair à noite é liberdade. Ir a um bar é convívio. Entrar numa discoteca é dançar. E o cenário de tudo isto em nada se coaduna com regras sanitárias apertadas, álcool gel nas mãos, máscara a tapar o rosto, distanciamento social. Social não rima com distanciamento, já se sabe, mas há mais de um ano que andamos neste desencontro. À noite todos os gatos se tornaram realmente pardos, com a ajuda indispensável de estupefacientes, e escondem-se num novo negócio de festas clandestinas, à la Lei Seca. Ou então soltam leves miares em casa dos amigos, depois de os restaurantes nos porem na rua 90 minutos antes da hora da Cinderela. Isto se a polícia não aparecer, porque alguém denunciou a alegria contida que acaba de escapar da casa do vizinho.
No passado fim de semana, o escândalo estalou no miradouro de São Pedro de Alcântara, junto ao lisboeta Bairro Alto. Desde janeiro, a PSP e a GNR já acabaram com 120 festas em todo o País. Há quem defenda que se os bares e discotecas estivessem abertos, esta contabilidade seria bastante mais desfavorável para as forças de autoridade.
Sair à noite é liberdade. Mas, como voltar a ela, 13 meses depois, se já quase deixou de ser assunto, se o tema não consta em nenhumas das gotas deste longo plano de desconfinamento? Como resistir, como não perder a vontade, como inventar formas de manter as portas abertas, os empregados a trabalhar, mesmo que isso signifique não ser carne nem peixe, não faturar o suficiente para abandonar o saldo negativo?
Sair à noite é liberdade. Não é libertinagem. Só quem nunca por lá andou é que pode imaginar cenários dantescos e de promiscuidade constante. E não se preocupar com todos os que dependem deste negócio.
Vergonha da noite?
“Há vergonha de se falar da noite e os empresários são marginalizados. Mas os bares e discotecas são geridos por gente com família”, nota Cajó Ferreira, relações públicas do grupo K. “Eu que sempre fui da noite, sou casado, tenho três filhos, não me drogo nem sou alcoólico”, conclui.
No final de cada Conselho de Ministros em que António Costa decide sobre o quanto estica a corda do desconfinamento, pergunta-se sobre a situação dos bares e das discotecas. Na quinta-feira, dia 29 de abril, a mesma rotina de sempre: “Não tenho nada a acrescentar”. As justificações andam todas à volta do mesmo. Por serem espaços de diversão à porta fechada, em que circula álcool, se ouve música alto e se dança, tornam-se locais com condições propícias à propagação do coronavírus. Por isso, continuam sem perspetivas de quando poderão voltar ao ativo. Nada está previsto, apesar de no meio já se falar no futuro, no abrir apesar da pandemia, numa noite com outros contornos, mas com tudo o que a define. A solução, qualquer que ela seja, passará sempre pela realização de testes rápidos na hora da diversão. Só assim podem cair as máscaras e soltarem-se os abraços – o risco faz parte da vida e especialmente da vida à noite.
A solução passará sempre pela realização de testes rápidos na hora da diversão
José Gouveia, da Associação Nacional de Discotecas (AND), sente que este é o momento para se abrirem os pequenos bares que dão para 30 a 40 pessoas. “Quando estamos a falar de desporto ao ar livre, de concertos ao ar livre, de toda a parte cultural, espetáculos, não faz sentido não haver espaços de diversão noturna ao ar livre abertos”, lamentou-se à LUSA. “O importante é começar a abordar o tema junto da Direcção-Geral da Saúde. É preciso encontrar consenso para começar, efetivamente, a retomar a atividade”, acrescentou.
Nas conversas recentes com as Secretarias de Estado do Comércio e do Turismo, uma das propostas que tem estado em discussão é as discotecas poderem funcionar com as regras de cafés ou pastelarias, mantendo-se a dança proibida, como já aconteceu no verão passado. Ou seja, deixando de ser discotecas. A AND registou também que o Governo mostrou disponibilidade para aumentar os apoios ao setor. Mas o que eles querem é ter outra vez as casas cheias de pessoas para quem a noite não é uma futilidade, fácil de descartar.
Um circuito musical
Enquanto essas medidas não passam de intenções, alguns teimam em abrir portas, como podem. Vai-se para lá ainda é de dia, fecham quando antes nem tinham aberto, arranjam espaço para as mesas e cadeiras, aumentam a lista de petiscos. Ninguém passa à posição vertical sem máscara (só para ir à casa-de-banho). De resto, tudo se passa em cadeiras e dançar nem pensar – movimento, só da cintura para cima.
É assim que o Lux, nem precisa de mais apresentações, volta a receber clientes, o que não é bem o mesmo de reabrir. Não vai passar a ser o que era em março de 2020, irá manter-se naquele limbo do verão do ano passado: esplanada em cima, com mesa e cadeiras, sala de espetáculos no primeiro piso, pista de dança só para peças de teatro. “A programação que vamos ter agora está paga pela Câmara e insere-se no Circuito. O Lux tem-se aguentado devido aos apoios que existem”, assume o programador Pedro Fradique.
O Circuito é constituído por 12 salas que vão reabrir as portas para uma vasta programação, com 120 eventos a cargo de um total de 480 artistas
O Circuito é constituído por 12 salas que vão reabrir as portas para uma vasta programação, com 120 eventos a cargo de um total de 480 artistas e outros profissionais da cultura, ao longo de maio e junho. Além do Lux, haverá música no B.Leza, Casa Independente, Casa do Capitão, DAMAS, Hot Clube de Portugal, Lounge, Musicbox, RCA Club, Titanic Sur Mer, Valsa e Village Underground Lisboa. No cartaz, destacam-se nomes como Menino da Mãe, Ricardo Toscano, Fogo Fogo, DJ Marfox, Amaura, Mynda Guevara, Gala Drop, Scúru Fitchádu, P.S. Lucas ou Benjamim. Este ciclo resulta de um apoio aprovado pela Câmara Municipal de Lisboa, saído do plano Lisboa Protege, que existe com o objetivo de assegurar a sobrevivência destes espaços e viabilizar o regresso de artistas e técnicos ao vivo, depois de terem estado tanto tempo mortos.
A abrir, aos bocadinhos
Ana Paula Afonso, dona da discoteca Roterdão, gostava de fazer parte deste núcleo e nem percebe porque ficou de fora, se até licença de recinto o seu espaço tem. Aliás, quando fechou, em janeiro, a casa estava apenas dedicada a espetáculos de stand up e ao burlesco, depois de umas obras de remodelação terminadas em setembro. Da autarquia, não lhe dão respostas – no entretanto as portas mantêm-se fechadas. “As paredes até parece que encolhem. O espaço não respira”, conta, com a voz carregada de desalento. Já teve de dispensar todos os seus empregados e agora só resta ela, que todos os dias se esforça por inspirar e expirar, enquanto espera por melhores dias.
O vizinho Povo, na Rua Cor-de-Rosa, no Cais do Sodré, aproveitou o confinamento geral para grandes obras e agora abre apenas como restaurante, servindo-se da esplanada que antes se enchia de gente pela noite dentro, de copo na mão. Como este, nos últimos dias, desde que o País começou a sair da toca, muitos foram os que se adaptaram aos horários de matiné e ao culto do estar-sentado-e-não mexe.
Há, no entanto, histórias que ficarão por repetir, sem despedidas, como todas aquelas que aconteceram no Jamaica, no Tóquio ou no Europa que já deixaram de existir nesta meca da noite lisboeta. Nem o seu chão alguma vez mais se colará aos sapatos, depois de muitas cervejas entornadas. Os três bares com ofertas musicais diferentes mudaram-se para junto do rio, não muito longe dali, no Cais do Gás, mas a léguas do carisma que foram conquistando durante décadas, Apesar disso, alimentam a esperança de voltar ao ativo no final de 2021, embora num formato muito mais clean.
O mítico 2001, por exemplo, a discoteca do autódromo do Estoril, também já fez a experiência de uma semi-abertura, chamemos-lhe assim, em modo otimista, mas teve de prestar muitos esclarecimentos nos seus canais de comunicação, por culpa de atos pouco compreensivos por parte dos clientes: “A Catedral do Rock está aberta apenas como café. A discoteca nos moldes a que estavam habituados está encerrada e não são permitidos determinados comportamentos. A dança, é totalmente proibida (…). Estas leis não são da Catedral do Rock, são impostas pelo governo português. Não é do nosso agrado ter uma pista de dança vazia e com mesas, em que as pessoas não se podem divertir como desejam (…). Quando abordamos as pessoas para cumprirem as regras nem sempre somos bem interpretados e na maioria das vezes verifica-se uma grave violação às regras por pessoas que não têm qualquer respeito e não valorizam o trabalho realizado pelos elementos da administração, agindo por vezes com violência verbal, física ou gestos menos adequados. Preferem a Catedral fechada? Ou será melhor aproveitar o que temos de momento até abrirmos em pleno?”
Eis a dúvida que é comum a todos: manter a noite às escuras ou abrir as luzes, perdendo a identidade? Afinal de contas, sair à noite assim não é liberdade.
E lá fora, como é?
Um pouco por todo o mundo, ensaia-se o regresso à noite. No Reino Unido, por exemplo, a abertura está marcada para 21 de junho. Mas em Liverpool já se fizeram eventos-teste, com seis mil pessoas, sem máscara, sem distanciamento e com muita música. “A ideia é as pessoas agirem como antes da Covid”, explicou o organizador, o DJ Yousef Zaher, que se limitou a pedir que as pessoas se testassem.
O músico David Byrne, ex-líder da banda Talking Heads, é um dos curadores do projeto Social! The social distance dance club – trata-se de uma noitada que corresponde a todas as exigências do coronavírus. Num parque, em Manhattan Upper East Side, 100 participantes podem, a troco de um bilhete, de uma forma um tanto ou quanto rocambolesca, dar um pé de dança enfiados numa bolha, com máscara, temperatura medida e testes rápidos de COVID-19 à entrada.
Em Hong Kong, desde o final de abril, alguns bares podem estar abertos até às duas da manhã e receber grupos alargados, desde que façam parte de uma vaccine bubble – os empregados e os clientes têm de provar que já levaram, pelo menos, a primeira dose da vacina contra a Covid-19 e devem ter descarregado a app governamental que mapeia os contactos.