A revolução começou esta semana. A partir de agora, quem instalar a versão 14.5 do sistema operativo iOS ou iPadOS poderá recusar que as aplicações do seu iPhone ou iPad recolham os seus dados para fins publicitários.
Até aqui, essas informações eram armazenadas sem pré-aviso e, muitas vezes, não havia nada que pudesse ser feito para o impedir.
Contudo, desde segunda-feira, os utilizadores dos dispositivos da Apple só precisam de responder negativamente a uma pergunta, sempre que descarregarem uma nova aplicação, se não quiserem partilhar os seus dados com anunciantes.
Esta possibilidade é sinónimo de uma alteração radical da política de privacidade da empresa norte-americana. Além isso, revoluciona totalmente a lógica do mercado publicitário digital, assente nos anúncios personalizados. Afinal, só através da monitorização minuciosa da atividade dos internautas é possível traçar o seu perfil de consumo de forma cirúrgica.
Os utilizadores dos dispositivos da Apple só precisam de responder negativamente uma pergunta se não quiserem partilhar os seus dados com anunciantes
A primeira reação de desagrado perante esta mudança de paradigma surgiu de um grupo de nove empresas, ligadas às áreas do marketing, tecnologia e comunicação social, que acusa a Apple de “quebrar as regras anti monopólio” ao introduzir alterações que vão “prejudicar o mercado publicitário”.
Entre os queixosos está o Facebook, um dos principais prejudicados, já que esta rede social utiliza a extração de dados dos utilizadores para garantir que os anúncios dos seus clientes chegam diretamente ao seu público-alvo. Por isso, se a aplicação não conseguir registar o que fazem, compram ou gostam os proprietários de iPhones ou de iPads ficará com menos informação disponível que lhe permita traçar o perfil de cada consumidor, ou seja, acabará circunscrita ao que é partilhado no Facebook, sem poder espiar o que se passa fora da rede social.
“Não concordamos com a abordagem da Apple”, reagiu a empresa liderada por Mark Zuckerberg num comunicado. “A sua atitude sugere que há um intercâmbio entre publicidade personalizada e privacidade quando, na verdade, nós garantimos ambas”, assegura o Facebook.
A Apple contrapõe que “a privacidade é um Direito Humano fundamental” e coloca-se ao lado da União Europeia em matéria de proteção de dados. “Os utilizadores são donos dos seus dados e devem decidir se desejam partilhá-los e com quem. Com o iOS 14, damos-lhes a opção de permitir ou não que as aplicações os possam rastrear, vinculando a sua informação a terceiros com fins publicitários”, esclareceu.
Esta nova versão do software da Apple inclui a App Tracking Transparency (Transparência de Rastreio de Apps), que irá lançar uma janela pop-up sempre que uma aplicação quiser rastrear dados, como a localização ou as pesquisas feitas no equipamento. O alerta permite rejeitar esse rastreamento, mas também dá oportunidade às empresas de explicarem a finalidade da recolha de dados.
Em vez de definir a política de privacidade em cada uma das apps, também é possível fazê-lo para todas ao mesmo tempo. Basta ir a “definições”, “privacidade”, “seguimento” e desligar a opção “permitir pedidos de seguimento das aplicações”.
Monopólio a abanar?
O The Wall Street Journal aponta outro possível motivo para o empenho de Tim Cook nesta mudança: os anunciantes que queiram publicitar em iPhones ou iPads terão dados mais fiáveis sobre as suas campanhas se comprarem espaço publicitário diretamente à Apple, em vez de o fazerem através de terceiros, como tem sido habitual até agora. Será este o primeiro passo para abanar o monopólio de Google e Facebook ao nível da publicidade online?
Já o The Washington Post sublinha que a Apple tem interesse em estimular a aposta das apps nas subscrições, em vez de na publicidade, porque a empresa ganha uma percentagem das compras feitas dentro das aplicações.
Os dispositivos da Apple têm um código único, denominado IDFA, uma espécie de identificador para anunciantes, que permite à empresa e às aplicações instaladas registar a atividade das pessoas quando navegam na internet ou utilizam apps. As pesquisas, as compras, as interações com amigos, os jogos preferidos… Tudo isso fica registado e, claro, é fundamental para traçar o perfil daquela pessoa em concreto, não através do seu nome, mas do seu IDFA. Agora, com esta nova política de privacidade, o IDFA ficará a zero, permitindo navegar anonimamente.
Apesar de os utilizadores do iOS serem uma minoria, são muito valiosos. Pressupõe-se que têm um maior poder de compra do que os restantes
O sistema operativo da Google, o Android, está instalado em mais de 70% dos telemóveis e funciona através de um sistema semelhante ao IDFA. Neste caso, chama-se AAID. No entanto, a empresa não pretende seguir a estratégia da Apple, até porque está muito mais dependente do mercado publicitário digital do que a vendedora de telemóveis (e de outros equipamentos eletrónicos).
No entanto, no início deste ano, a Google anunciou a intenção de encontrar formas alternativas de alimentar a publicidade segmentada que não impliquem a recolha de dados de navegação.
Apesar de os utilizadores do iOS serem uma minoria, são muito valiosos. Pressupõe-se que, tendo um iPhone ou um iPad, beneficiem de um maior poder de compra do que os restantes.
Um inquérito da empresa de análise de dados AppsFlyer estima que cerca de 40% das pessoas aceitem continuar a ser rastreadas para fins publicitários.
O Facebook vai tentar convencer os internautas através de uma janela informativa sobre o funcionamento da publicidade personalizada. Entre os seus argumentos está a ideia de que o fornecimento de dados permite apoiar negócios locais ou manter gratuitas muitas aplicações que dependem da publicidade direcionada. Também sublinham que quem recusar dar as suas informações continuará a estar exposto a publicidade, mas esta não será adequada ao seu perfil de consumidor.
Agora, a decisão está finalmente nas mãos dos utilizadores da Apple.