“Quando toma essa decisão, em junho de 2011, para que isto fique claro, para um ano seriam 120 mil euros?”, pergunta o juiz Ivo Rosa.
À sua frente está José Sócrates, antigo primeiro-ministro socialista. Acusado de 31 crimes, entre eles corrupção, fraude fiscal qualificada, branqueamento de capitais e falsificação de documentos, o arguido da Operação Marquês responde que o valor citado se tratou de uma estimativa dos gastos que tencionava fazer quando foi estudar para Paris e, por isso, pediu um empréstimo daquele valor.
Não satisfeito, o magistrado judicial do Tribunal Central de Instrução Criminal insiste. Olha agora para o dinheiro disponível na conta de José Sócrates à data – 4 352,65 euros – e põe em causa que os 120 mil euros pedidos cobrissem todo o tempo que o político tencionava viver na capital francesa. Ivo Rosa é acutilante, questiona e reformula até obter o esclarecimento que procura: “Tendo este saldo e não tendo rendimentos além do empréstimo […]”
“Não, não, senhor juiz, com o devido respeito, não é assim. Eu pagava as minhas despesas em Paris com a minha conta em Paris”, contraria José Sócrates, e acrescenta que deveria ter pedido mais dinheiro para o segundo ano em Paris – quando diz ter vivido à conta de 450 mil euros que a mãe lhe deu, após a venda da sua casa na Rua Braamcamp, em Lisboa –, mas não pediu.
Foram nove horas de inquérito, nesse dia, 4 de novembro de 2019, que incidiram sobre a situação financeira do antigo governante e as relações com o amigo Carlos Santos Silva. Ivo Rosa fez as mesmas perguntas, de quatro e cinco formas diferentes. Método, aliás, constante nos julgamentos a que preside, conta, à VISÃO, um advogado que se cruzou com o magistrado noutras salas de audiência. “É extremamente rigoroso” e “escrupuloso”, diz a mesma fonte. “Se eu tivesse de ser julgado, preferia ser julgado pelo Ivo Rosa do que pelo Carlos Alexandre [o outro juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal, que começou por seguir a Operação Marquês].”
Ivo Rosa, 54 anos, é uma pessoa reservada, quase não dá entrevistas (abriu uma exceção, em setembro de 2017, para o programa Vidas de Mérito, da RTP Madeira, estação onde trabalha um dos seus quatro irmãos), mas é polémico. Passaram-lhe pelas mãos alguns dos grandes processos e tem fama, entre os procuradores do Ministério Público e os inspetores da Polícia Judiciária, de ser benevolente com os arguidos por aceitar apenas provas diretas, científicas, mesmo nos casos de corrupção (em que estas são mais difíceis de obter), avaliando de forma separada cada prova e indício, o que lhe valeu a alcunha, nos corredores das Varas Criminais de Lisboa, de juiz “por si só”.
No caso EDP, por exemplo, entendeu, porque as suspeitas não seriam sólidas, que Manuel Pinho não deveria ser alvo de buscas e o Ministério Público não deveria ter acesso aos dados bancários de António Mexia. E, no final de março deste ano, decidiu mesmo devolver as cauções “desatualizadas” de um milhão de euros a cada um dos antigos administradores da EDP, aplicadas pelo juiz Carlos Alexandre.
Dos 189 crimes que constavam na acusação da Operação Marquês, Rosa decidiu levar a julgamento apenas 17. Arquivou as queixas contra 23 dos 28 arguidos do processo. Ministério Público vai recorrer da decisão
Uns dizem-no demasiado purista, tendo sido acusado de desvalorizar as investigações da polícia e alvo de pedidos para ser afastado de julgamentos; outros defendem que se trata do rigor necessário para a profissão e que o facto de ter mais pedidos de recurso nos seus casos do que Carlos Alexandre, por exemplo, não vale nada por si só. O juiz desembargador Pedro Mourão, que nunca se cruzou com Ivo Rosa, refere que “um juiz não pode ser avaliado pelo resultado dos recursos das suas decisões” e que “as leis podem ter várias interpretações”.
Mesmo assim, o caso do “Gangue do Multibanco” é habitualmente apresentado como sendo o maior erro da carreira do magistrado que vai leu a decisão instrutória da Operação Marquês nesta sexta-feira. Ivo Rosa liderou o coletivo de juízes das Varas Criminais de Lisboa encarregue de decidir o destino de 12 arguidos acusados de associação criminosa, roubo agravado, furto qualificado, posse de arma proibida e tráfico de droga, que foram detidos na sequência de mais de uma centena de assaltos de norte a sul do País, entre 2008 e 2009. Na ausência de uma prova direta, apenas Jonny Portela, o cabecilha, foi condenado a uma pena de prisão de dois anos e seis meses por tráfico de droga.
O procurador José Góis – representante do Ministério Público – recorreu da decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa, que anulou o julgamento e ordenou a repetição. A decisão dos desembargadores da 9ª secção do Tribunal da Relação é um texto pouco convencional em que figuram pontos de exclamação, ironias e comentários depreciativos como: “para que ninguém seja condenado e o País entre em pânico generalizado com este tipo de criminalidade violenta, bastam um gorro, um par de luvas e força bruta!” ou “Que incompreensível forma de julgar! Imagine-se, por isso, o estado de incredulidade e revolta das vítimas”. E, em 2012, durante a repetição do julgamento, oito dos 12 arguidos foram condenados pela maioria dos crimes de que estavam acusados.
O desfecho não assombrou a consciência de Ivo Rosa, que, na entrevista que deu à RTP Madeira, afirmou decidir “sempre em consciência”. “Sou muito exigente comigo próprio. Não gosto de fazer as coisas aos bocados”, continuava. “Nunca tive um processo atrasado. Nunca tive uma decisão fora de prazo.”
Quem se cruzou com Rosa nos tribunais onde este julgou processos-crime civis, de família, de trabalho, diz que o juiz “tem um ar muito sério” a trabalhar. Solteiro e sem filhos, empenhou-se na carreira e, embora diga que gosta de viajar, ir ao ginásio, ao cinema, ler e estar com os amigos, também admite que tem pouco tempo livre para tudo isto, por causa da “complexidade” da profissão que escolheu no final do Secundário.
No tribunal, foi amor à primeira vista
Ivo Nelson de Caires Batista Rosa nasceu a 17 de setembro de 1966, em Santana, na ilha da Madeira. É o quarto de cinco filhos de um casal humilde. Os pais separaram-se era Ivo Rosa adolescente e os cinco rapazes, “que sempre foram muito unidos”, ficaram a viver com a mãe, conta um amigo do juiz.
Ivo foi sempre bom aluno e estava no último ano do liceu, “tinha 16 ou 17 anos”, quando decidiu que queria seguir Direito “por mero acaso”, segundo o próprio. Tinha uma colega de escola cujo pai era advogado e um dia levou-o ao Tribunal do Funchal onde Ivo Rosa assistiu, pela primeira vez, a um julgamento. Saiu dali encantado com o cenário e decidido quanto ao seu futuro: iria ser juiz.
Entrou na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra em 1985 e saiu em 1990. Paulo Prada, 53 anos, colega de turma e conterrâneo de Rosa, diz que o magistrado era o aluno que tinha sempre a matéria em dia. Ia “às aulas todas”, “tirava apontamentos de tudo, quase transcrevia os espirros dos professores, com uma letra ótima, enorme” – tudo em notas que depois circulavam pela turma.
“Lembro-me de que queria sempre saber a razão das coisas. Ele não tomava decisões de forma vã, ia ao fundo”
Paulo Prada confessa que lhe deve quase o seu curso de Direito. Era o oposto de Ivo: mais boémio e metia pouco os pés na sala de aula. Como não existia avaliação contínua, Paulo viajava constantemente para a capital e assim que chegava a Coimbra passava por casa de Ivo e fotocopiava os apontamentos. “Ele era impecável. Fazia aquilo de forma altruísta”, recorda-se. “Era uma pessoa muito justa, reta e já gostava de tomar decisões. Lembro-me de que queria sempre saber a razão das coisas. Ele não tomava decisões de forma vã, ia ao fundo.”
Quando deixaram Coimbra, a vida afastou-os e curiosamente é com o irmão de Paulo – José Prada, advogado, 51 anos – que Ivo Rosa ainda hoje mantém amizade. Foi no escritório de advogados do pai dos irmãos Prada que o juiz fez um estágio assim que chegou à ilha licenciado, apesar de nunca ter sequer considerado advocacia. Isto aconteceu antes de se tornar assessor jurídico da Câmara Municipal do Funchal e de ter ingressado no Centro de Estudos Judiciários, em Lisboa.
Ivo Rosa e José Prada criaram uma ligação nos anos seguintes, quando o magistrado começou a exercer na Madeira (1993 a 1999). Fez o seu primeiro julgamento sumário, aos 26 anos, no Tribunal do Funchal, um caso de condução sob o efeito de álcool, e nos anos seguintes destacou-se pela rapidez com que trabalhava, chegando a concluir sentenças em três e quatro dias. Os dois amigos cruzam-se em processos e, mesmo em lados diferentes da bancada, José Prada descreve o juiz como “um exemplo de correção”. “Ganhei e perdi processos com ele. Alguns perdi, recorri e depois ganhei em Lisboa. Outros perdi mesmo, porque não tinha razão.”
Ivo Rosa ainda chegou a conciliar o trabalho na Madeira com julgamentos em Lisboa, mas, em 2005, opta pela capital, onde passa a julgar crimes considerados mais graves, com penas superiores a cinco anos de prisão. Mas não aquece o lugar, um ano depois parte para Timor Leste, ao abrigo de um programa da Organização das Nações Unidas (ONU), para ajudar a formar juízes e reforçar o sistema judicial de um país que dava os primeiros passos após a independência.
Trabalhou em tribunais onde não havia “eletricidade, internet ou ar condicionado” e onde Ivo Rosa conta que fazia as vezes de funcionário judicial também: “Tinha de transcrever os depoimentos, pôr as pessoas a assinar os documentos.” Mais uma vez, a sua prestação não é consensual. Visto como justiceiro por alguma imprensa, travou uma guerra com o poder que, de acordo com o juiz, fez com que fosse afastado. Entre os mais de 60 acórdãos que produziu, condenou o vice-presidente da Fretilin e antigo ministro do Interior, Rogério Lobato, a sete anos e seis meses de prisão, por coautoria de quatro crimes de homicídio, e chumbou por inconstitucionalidade normas do Orçamento Retificativo de 2008.
Seguiu para a Guiné-Bissau como formador e depois regressou a Lisboa, para as Varas Criminais. Tornou-se o primeiro juiz português a ser eleito pela Assembleia Geral das Nações Unidas para o Mecanismo Internacional para os Tribunais Penais Internacionais, criado pelo Conselho de Segurança para substituir os tribunais da ex-Jugoslávia, onde estavam a ser julgados os crimes de genocídio cometidos no Ruanda, em 1994. Rosa foi reconduzido pelo secretário-geral, Ban Ki-moon, para o mesmo cargo por mais quatro anos. E, no final, ponderou aceitar um lugar no Programa de Assistência Europa Latino-Americana contra o Crime Organizado Transnacional, em Madrid, mas terá desistido, alegando motivos pessoais.
Em vez disso, em 2015, escolhe o Tribunal Central de Instrução Criminal, o Ticão, como é mais conhecido, até então dominado pelo juiz Carlos Alexandre. Ivo Rosa “tem algumas mágoas e parece ter necessidade de afirmação em relação a Carlos Alexandre”, comenta outro juiz desembargador. Certo é que – apesar de evitar os holofotes – tem ganhado protagonismo e casos a Carlos Alexandre, como aconteceu com a Operação Marquês.
Mudanças no Ticão
Dois juízes têm nas suas mãos as decisões sobre todos os grandes casos de corrupção do País: Carlos Alexandre e Ivo Rosa. São os únicos com lugar no Tribunal Central de Instrução Criminal, mais conhecido como Ticão, e onde são julgadas as investigações do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP). O modelo é polémico e o pedido de erradicação deste tribunal é recorrente. Já este mês, o Governo afirmou que quer mudanças no Ticão, sugerindo que o número de juízes será aumentado.