Ainda não são três da tarde, hora a que o núcleo da União Audiovisual (UA) do Porto se prepara para dar início às entregas quinzenais de bens alimentares, e já começam a chegar as primeiras famílias. “Há 15 dias eram 31 cabazes, hoje são 40. Os pedidos de ajuda têm vindo sempre a aumentar”, constata Hugo Costa. Huguinho como é conhecido pelos amigos, 45 anos, é empresário e dono da empresa In Rock We Trust que, desde há um ano, funciona como ponto fixo no Porto da associação de cariz social e cultural de apoio aos profissionais técnicos e artistas da cultura, espetáculos e eventos, nascida em abril de 2020.
Nesta segunda, 1 de março, um ano após a chegada da pandemia a Portugal, só no Porto ajudará 111 pessoas (35 crianças incluídas). São essencialmente do Grande Porto, mas também vêm de Braga, de Barcelos … “Estamos a responder a todas as necessidades que nos chegam, mas não sei como vai ser daqui a meio ano”, desabafa Hugo Costa. “Temos casos que vêm buscar o cabaz desde o início. Notou-se o desaparecimento de algumas pessoas em agosto e setembro quando arranjaram trabalho, mas depois voltaram.”
Não foi o caso de Manuel [Nino] Fernandes, 52 anos. O músico do Ofir Show (onde faz dueto com a mulher, Ana Paula Nascimento) vem pela primeira vez buscar o cabaz com bens alimentares – leva batatas, cereais, carne picada, frango, rissóis, croquetes, iogurtes, leite, queijo, fiambre… Há um ano que o casal sobrevive com o ordenado de Ana Paula, administrativa num centro de saúde. Nino não teve direito aos apoios do Ministério da Cultura, porque cessou a atividade em 2019. “Tenho tentado arranjar vários trabalhos, já fui a entrevistas em supermercados, empresas de construção, charcutarias, mas nada… Neste momento, sinto-me um bocado inútil. Queria ajudar a minha mulher e não consigo”, lamenta o vocalista habituado a cantar, há 37 anos, temas populares portugueses “em festas, arraiais e até no estrangeiro”. “Qual é a porta onde posso ir buscar [o cabaz]?”, pergunta. “Desculpem, é a primeira vez que venho”, justifica com embaraço.
Já Catarina Ribeiro, 29 anos, atriz formada pela Academia Contemporânea do Espetáculo, conhece bem os cantos à casa. Desde janeiro que a responsável pela cooperativa cultural Kings Produções vem buscar o cabaz alimentar para preparar as refeições dela e do companheiro. Desta vez, convenceu a colega Maria Manuel, 56 anos, a vir também: “Tenho um filho com 12 anos. Vivemos com o ordenado do meu marido que trabalha numa oficina”, justifica a amiga e contrarregra, com timidez. Sem apoios estatais, quem tem valido a Catarina são os pais que a ajudam a pagar a renda de casa. A peça de Rois de Lune “Quem tem medo do lobo mau?”, foi o último espetáculo que levou ao palco no Theatro Gil Vicente, em Barcelos, em fevereiro de 2020. Desde então, o pano nunca mais subiu.
“Tentei aguentar-me, mas não dava mais”
A entrega de alimentos na União Audiovisual do Porto é feita rapidamente. Quem chega, estaciona junto ao passeio, abre a mala do carro, vai à garagem da In Rock We Trust levantar o cabaz – onde uma empresa de eletrodomésticos lhes cedeu os frigoríficos para se guardarem os frescos e as caixas pretas habituadas a transportar material para os espetáculos servem agora de mesa de apoio. Entre uma e outra frase curta, seguem viagem. Tem sido assim, às segundas-feiras, de 15 em 15 dias, desde há um ano, quando foi criada a União Audiovisual como resposta à crise do setor da cultura. E, a cada mês, crescem os pedidos de ajuda nos oito polos espalhados a nível nacional. “Todos os meses têm aumentado”, sublinha Inês Sales, responsável pela comunicação. Em janeiro doaram 210 cabazes em todo o País, no final de fevereiro passaram a ser 280 entregues a 850 pessoas. “Quando fizermos a nova contagem neste mês, haverá certamente mais”, acredita.
O músico Emanuel Fernandes, 42 anos, faz parte desse último núcleo de artistas que decidiu pedir ajuda alimentar. “Tentei aguentar-me, mas não dava mais”, confessa. Veio de Braga onde vive com a mulher, Susana, e duas filhas com 14 anos, a dele e a da companheira. Sem concertos há um ano (fez parte, entre outras, da banda do rapper Ângela Polícia), o guitarrista é formado pela Associação Escola de Jazz de Braga e pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, mas está “a tentar mudar de vida”. “Na música não dá. Todos os meses envio à volta de 200 currículos. Já trabalhei dois meses nas obras, na construção civil. Foi duro, difícil, mas teve de ser”, conta.
Ao passeio da Rua do Falcão, junta-se o brasileiro Fernando Donasci, 42 anos, fotojornalista freelancer que trabalhou durante 10 anos para a Folha de São Paulo. A viver no Porto há quatro anos, pai de quatro filhos, viu todos os trabalhos fotográficos serem cancelados em novembro, quando a família toda teve Covid. “Nunca mais ninguém me contratou”, diz. O pedido de ajuda à União Audiovisual foi a solução. O mesmo aconteceu com Tony Santana, 48 anos, voz e teclas do Duo Lusitanos, a tomar conta de um neto com quatro anos. “Se me perguntar sobre o futuro, ainda tenho esperança que tudo volte ao normal”, acredita o músico.
“No início [da entrega de alimentos] foi um cenário duro”, confessa o empresário Hugo Costa, cuja empresa de aluguer de material para espetáculos registou uma quebra de faturação de 87 por cento em relação a 2019. “Estava habituado a lidar na estrada com eles todos [técnicos de som, de montagem de palco, músicos…]. Sentia um peso, que isto não podia depender só de mim. Depois, passei a encarar como tinha de ser. Ninguém está livre disto.” “Para mim, terá um fim quando pudermos voltar a fazer espetáculos. Aí, voltaremos a encontrar-nos nos palcos.”