Já todos passámos por isto, pelo menos uma vez na vida: estamos perdidos numa localidade, sem acesso ao gps, e pedimos ajuda a um residente na zona. Seguimos as instruções mas não chegamos ao sítio pretendido. Na dúvida – “percebemos bem?” – perguntamos de novo ao próximo transeunte e o resultado é semelhante. O que pensar, se a paciência o permitir? Na versão tolerante, “as pessoas só queriam ajudar”. Na outra, “tinham de dizer alguma coisa para parecer que sabem”. Não raras vezes, o episódio dá azo a pequenos conflitos com o parceiro de viagem: “Eu disse que era melhor tentarmos sem pedir conselhos, iam lá admitir que não sabem dar instruções…” Ironicamente, quem ofereceu os seus préstimos juraria a pés juntos que estava certo. Porque é que isto acontece?
A sombra do “Sabichão”
Numa altura em que já ninguém pode ouvir falar de pandemia, é frequente o desabafo: “Agora todos são epidemiologistas.” Quem diz epidemiologistas diz especialistas. No universo do futebol, popularizou-se a expressão “treinadores de bancada”, mas o fenómeno estende-se a outras áreas, da política à economia, da nutrição ao exercício parental, deixando boquiabertos investigadores e profissionais credenciados, tantas vezes os primeiros a duvidar dos seus conhecimentos. “Como se atrevem?”, dirão, em surdina, não vão cair-lhes em cima com o seu arsenal de certezas absolutas, sem lugar para qualquer margem de erro como as referidas nos estudos científicos e na ficha técnica das sondagens.
Rumamos à América, por ter sido na Universidade de Cornell que dois investigadores se lembraram de mergulhar no assunto, com recurso à avaliação de conhecimentos e de competências (compreender a leitura de um texto, manobrar veículos ou jogar xadrez). Os resultados das experiências, publicadas no Journal of Personality and Social Psychology, no final de 1999, valeram a Justin Kruger e David Dunning, à entrada do milénio, o Prêmio IgNobel (criado pela revista de humor científico Annals of Improbable Research), por a sua descoberta fazer rir e, depois, pensar.
O Efeito Dunning-Kruger, também designado por “sabedoria dos idiotas”, é uma distorção cognitiva que resulta da ignorância: pessoas que sabem pouco têm excesso de confiança nas suas competências e, nas decisões que tomam, cometem mais erros mas não conseguem reconhecê-los, achando que sabem tudo ou mais do que os outros, porventura mais bem preparados. A ilusão de superioridade não se deve ao conhecimento, mas sim à ignorância. Estamos diante de um paradoxo que os investigadores ilustraram da seguinte forma: “Se alguém for incompetente, não consegue saber que é incompetente.”
Será realmente assim? “Todos nós, quando tiramos uma conclusão, fazemos um teste, de forma mais ou menos simplista”, observa José Palma-Oliveira, docente da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa. Assim se pode resvalar para o Efeito Dunning-Kruger. O psicólogo social adianta: “Quanto menos se sabe de algum assunto, mais se acha que se sabe, por se ser menos capaz de testar se sabe, ou não.” Ou seja, pela dificuldade em realizar esse “checking”, algo de que se fala muito em tempos de pós-verdade (no caso dos media, “fact-checking”).
A impossibilidade de dizer “não sei”
As implicações desta “cegueira” têm implicações na vida quotidiana e uma delas é a negação de tudo o que envolve um nível de elaboração ou complexidade, que falham em reconhecer, sejam os seus pontos cegos ou as competências dos outros.
A ilusão de superioridade não se deve ao conhecimento, mas sim à ignorância
Surpreendida com estas revelações, a dupla de investigadores fez novas experiências com universitários, através de autoavaliações nas áreas da gramática, da lógica e, até, do humor (que envolve a metacomunicação, ou seja, entender o conteúdo e, ao mesmo tempo, a forma da mensagem). Resultado: o grupo que teve piores notas avaliou o seu nível de competências bem acima do outro que, curiosamente, subestimou o seu desempenho, por avaliar as tarefas como fáceis e pressupor que o seriam para todos.
Aqui chegados, é incontornável a referência a Sócrates, o “Pai da filosofia ocidental”, e ao “só sei que nada sei”. Ao longo da História, foram muitas as certezas refutadas pela Ciência, bastando ilustrá-lo com esta: a Terra, afinal, não é plana e, desde a invenção do microscópio e do telescópio, chega a ser chocante deparar-se com o grau de infinito nas dimensões micro e macro do universo.
Quanto mais se descobre, mais se tem para descobrir, é um nunca acabar de aprendizado e a constatação de que não se pode saber nada com absoluta certeza, pois o que é certo hoje pode muito bem ser errado amanhã. São as vicissitudes da vida, que nos fazem sentir um grão de areia do deserto, uma gota de água do oceano, uma partícula insignificante do Cosmos.
A função da humildade
Uma coisa é certa: mesmo quando se tem competência intelectual para pensar “posso estar errado(a)”, não é fácil admiti-lo, sobretudo num mundo polarizado. Por instinto ou defesa, acabamos por agarrar-nos às nossas crenças e convicções, descartando pontos de vista que não se alinham com os nossos.
Porque caímos nesta falácia e como sair dela? Num minidocumentário da BBC sobre o tema, divulgado no ano passado, o psicólogo social David Dunning respondeu, sem rodeios: “Temos de conhecer os nossos limites e tolerar aqueles que discordam de nós, uma vez que até podem estar mais próximos da verdade do que julgamos.” Um desafio e tanto, na medida em que requer treino, trabalho, esforço, embora o principal obstáculo a vencer seja a superioridade ilusória e dispor-se a ter uma atitude mais disponível: “É preciso ter a humildade intelectual de reconhecer que simplesmente não sabemos.”
Ter uma visão favorável de pessoas com pontos de vista divergentes ou discordantes do nosso cria condições para explorar hipóteses num contexto colaborativo, negociar e estabelecer compromissos, com vantagens mútuas
Pessoas com uma mente aberta terão mais facilidade em fazê-lo, pela consciência das vantagens que traz, de crescimento, intelectual e a outros níveis. As implicações disto na sociedade são significativas. Os estudos mostram que ter uma visão favorável de pessoas com pontos de vista divergentes ou discordantes do nosso cria condições para explorar hipóteses num contexto colaborativo, negociar e estabelecer compromissos, com vantagens mútuas.
A dupla The Minimalists (com dois documentários na Netflix), formada por dois amigos americanos, Ryan Nicodemus e Joshua F. Millburn, também tem refletido sobre o tema, ainda que não se refira à designação original. Joshua F.Millburn refere-se à expressão “epidemia dos conselhos” (The Advice Epidemic) para, logo a seguir, nos por a pensar: “O desejo de convencer os outros é irresistível; orientar e dar pistas de autoajuda a terceiros para irem na direção ‘certa’ dá a impressão de nobreza, basta olhar para as redes sociais.”
A tendência a ser prestável pode camuflar a necessidade de colocar-se num pedestal, ainda se a mensagem surgir num contexto amoroso (como esquecer clássicos como Fix You, da banda inglesa Coldplay?). “No momento em que tentamos convencer alguém, perdemos o fio à meada”, adverte Millburn.
À superfície, os “deve” e “não deve” lançados na estratosfera virtual, pode ter a melhor das intenções mas, num plano mais subtil, “é o ego a dizer ‘eu sei o que é melhor para ti’, ou ‘eu estou certo e tu estás errado’; não há ego maior do que o do Ajudante, eu próprio já o fiz muitas vezes e peço desculpa por isso.” Um exemplo de como o “menos é mais” – lema do movimento minimalista – também se aplica à comunicação consciente. Dito à portuguesa, “não fales do que não sabes”. É que, no limite, ninguém quer ser ignorante e, menos ainda, um treinador de bancada.