O Hospital Fernando da Fonseca, na Amadora, arrancou para uma noite de terça-feira muito complicada. A unidade hospitalar viu-se obrigada a transferir 48 doentes ali internados em enfermarias de Covid-19 para outras unidades hospitalares, quase todas na Grande Lisboa, devido a um colapso no sistema de oxigénio. Vários profissionais da instituição foram chamados (alguns de folga) para ajudar no transporte dos pacientes.
Vinte doentes tiveram como destino o Hospital de Santa Maria, o maior do país [13 com Covid-19 e sete com outras patologias). Os hospitais de São Bernardo, em Setúbal, Egas Moniz e São Francisco de Xavier, em Lisboa, complementaram a resposta pedida pelo Amadora-Sintra. Também o Hospital das Forças Armadas e os hospitais de retaguarda na Cidade Universitária abriram camas para estes infetados, cinco e seis doentes respetivamente. Portimão abriu quatro camas para estes doentes.
À VISÃO, fonte do Hospital de São João, no Porto, confirmou que eventualmente podem rumar àquela unidade alguns doentes do Amadora-Sintra, mas só se as respostas na Grande Lisboa não chegarem. A Administração Regional de Saúde de Lisboa admitiu que tal só poderá acontecer, até quinta-feira, perante a incapacidade de encaminhamento na região.
A unidade do Amadora-Sintra tinha, esta terça-feira, 363 doentes internados, tendo acusado pressão na rede de oxigénio por causa do excesso de pessoas hospitalizadas. Em comunicado enviado às redações, o hospital esclareceu que não esteve “em causa a disponibilidade de oxigénio ou o colapso da rede, mas sim a dificuldade da estrutura existente em manter a pressão”. Por isso, referiu, foi “necessário aliviar o consumo de oxigénio para estabilizar a rede e repor a normalidade”.
Ainda segundo o Fernando da Fonseca, os doentes que transferidos “nunca estiveram em perigo devido a esta ocorrência”. Até entrarem nas ambulâncias foram tratados com recurso a garrafas de oxigénio. Sendo que “nenhum [destes doentes] se encontrava nos cuidados intensivos”, explicou Rui Santos do Conselho de Administração do hospital, em conferência de imprensa à porta do Amadora-Sintra, esta noite.
Novo tanque de oxigénio a ser instalado. Relatos de caos
Na semana passada – com o objetivo de tentar evitar precisamente dificuldades na rede de oxigénio – a unidade tinha instalado um reforço desta rede na Torre Amadora e iniciou a montagem de um novo tanque de oxigénio para duplicar a capacidade existente, mas tal não foi suficiente.
Agora, o hospital está a “avaliar o impacto da estabilização da rede”, indicou aos jornalistas Rui Santos, que acredita que “esta será suficiente”. O Amadora-Sintra continua a receber doentes e mantém a urgência aberta.
“Os profissionais estão a entrar em exaustão e não se consegue do dia para a noite profissionais qualificados”
Fontes internas do hospital que serve os concelhos de Sintra, um dos com mais população do país, e da Amadora, descreveram um cenário de colapso.
“Tem havido falhas pontuais de oxigénio, ultimamente. Temos nove enfermarias de Covid-19, onde está a ocorrer uma quantidade absurda do uso de oxigénio. Isso levou a transferências de doentes para outros hospitais”, contou à VISÃO um enfermeiro na linha da frente da resposta ao novo coronavírus. “O Amadora-Sintra, sendo um hospital de terceira linha, é neste momento o hospital com maior número de doentes da região de Lisboa e Vale do Tejo”, acrescentou.
Segundo o mesmo profissional, o maior constrangimento é a necessidade de mais enfermeiros, médicos e assistentes operacionais, porque ventiladores e camas é sempre possível arranjar mais. “Os profissionais estão a entrar em exaustão e não se consegue do dia para a noite profissionais qualificados para lidar com doentes ventilados e não só”.
Capacidade a bater no limite há semanas
De acordo com Alexandre Valentim Lourenço, presidente do Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos (OM), o cenário no Amadora-Sintra é o exemplo de que “há várias semanas que já estamos a exceder as capacidades”.
“Naquele hospital estão o dobro dos doentes. Mas qualquer outra unidade corre o mesmo risco, que esta noite se está a registar, porque os hospitais não estão estruturados para isto. E, por isso, tal como um dominó, se uma peça começar a cair podemos ter um colapso de um sistema em rede”, apontou à VISÃO, criticando o “planeamento que deixa a desejar”.
“Há oito meses que andamos a alertar, de que chegaríamos ao inverno sem nenhum plano e com a única estratégia do ‘salve-se quem puder’”, frisou o dirigente da OM.
Alexandre Valentim Lourenço salientou que se, por um lado, “os hospitais como o de Santa Maria, da Universidade de Coimbra ou o São João têm um maior número de camas”, por outro, “significa que para acomodar estas transferências têm de se encerrar várias especialidades”. Porque, disse, “não pode ser qualquer estrutura a receber doentes que precisem de oxigénio de alto débito, e não pode nem um hotel, nem gimnodesportivos ou estruturas de campanha”.
“Se estes números de internamentos diários continuarem, o sistema não aguenta, porque estes doentes ficam muito tempo no hospital”, concluiu.
Esta terça-feira, estão internados 6 472 doentes com Covid-19 em Portugal; 765 destes encontram-se em unidades de cuidados intensivos.
“Relatórios alertaram para falhas há uma semana”
Pelo mesmo tom, esta noite de terça-feira, pautou-se Ana Rita Cavaco, bastonária da Ordem dos Enfermeiros, que receia que “a rutura do Amadora-Sintra se possa alastrar a outras unidades”.
“Se todos – e digo todos, a começar pelo Governo – tivermos consciência dessa ameaça e não se apostar em esconder informação ou desmentir avisos de diversas entidades, podemos evitar o pior dos cenários”, alertou à VISÃO, denunciado que, “já semana passada, havia relatórios preocupantes sobre o fornecimento de oxigénio a hospitais da Grande Lisboa”.
“Esperamos que se averigue a fundo que aconteceu no Hospital Fernando da Fonseca: se foi uma sobrecarga ou se uma avaria, porque tinha instalado um novo tanque de oxigénio, porque está sob uma enorme pressão”, disse, revelando que, ao início da noite desta terça-feira, “vários enfermeiros que estavam de folga disponibilizaram-se para assegurar estas transferências, porque são doentes que precisam de um acompanhamento”.
Ana Rita Cavaco pede que não se volte a replicar o que aconteceu, na semana passada, quando houve denúncias de uma eventual rutura no fornecimento de oxigénio.
“Os hospitais de Coimbra e o Garcia d’Orta [Almada] vieram dizer que não se passava nada. Então, é muito difícil arranjar alternativas e estratégias, porque não se pode trabalhar com uma política da terra queimada. A Ordem vai continuar a ter a total confiança na informação que chega de quem esta no tereno. E não nos venham desmentir, se depois não têm soluções”, criticou, visando a ministra da Saúde, Marta Temido.