Era uma vez… Na Vila de Nada Acontece. Há o parque, o museu, a horta comunitária, a padaria, a biblioteca e o caminho entre eles. Neste território fictício há também um estúdio de ioga, até porque quem arquitetou o mapa é professora de meditação e de ioga há vinte anos. Em Quando Nada Acontece: Histórias aconchegantes que serenam a mente e ajudam a dormir (Penguin Random House, 312 págs., €19,90), os narradores, sem nome e sem género, contam os seus dias e partilham sugestões de conforto com a intenção de acalmar o leitor até o sono chegar (ou a retomá-lo, caso acordem a meio da noite).
Kathryn Nicolai tem 40 anos, mas desde os quatro começou a contar histórias a si mesma como forma de sossegar a mente e entrar nos reinos de Hipnos (sono) e de Morfeu (sonho), coisa que nem sempre é fácil, sobretudo quando a ansiedade e as vicissitudes do dia insistem em levar a sua avante e deixarem uma pessoa em alvoroço, sem saber como por fim a uma espertina indesejada.
Além de proporcionar experiências sensorialmente ricas, o livro conta com ilustrações (da designer gráfica francesa Léa Le Pivert) e apresenta receitas, sugestões de decoração, exercícios respiratórios, técnicas de relaxamento e de atenção plena (mindfulness).
Em cada uma das histórias, a autora procura desafiar a perceção que temos do quotidiano e convida-nos a descobrir – ou a redescobrir – a alegria das pequenas coisas, dentro de nós e à nossa volta, e que passam despercebidas na velocidade dos dias.
Dias loucos, noites brancas
Será que nós, adultos, precisamos de embalo, como as crianças, para nos entregarmos ao sono? Pode ser embaraçoso assumi-lo, mas os dados disponíveis no princípio da realidade que temos apontam para o “sim”. Médicos e investigadores insistem na importância de ter um sono de qualidade, que implica levar menos “tralha” mental para o quarto e fazer menos “asneiras” antes de dormir: evitar o consumo de cafeína à noite, atividade física ou ingerir refeições pesadas próximo da hora de ir para a cama e não trabalhar ou fazer outras coisas até tarde. São muitos “nãos” juntos.
Adultos com horários desregrados, que dormem menos do que o recomendável e não cultivam rituais de adormecimento são fortes candidatos a chumbar no teste da higiene do sono
Adultos com horários desregrados, que dormem menos do que o recomendável, se mostram incapazes e não cultivam rituais de adormecimento são fortes candidatos a chumbar no teste da higiene do sono. O resultado está à vista: segundo a Associação Portuguesa do Sono, 9% dos portugueses tem insónia crónica (problemas em dormir pelo menos três vezes por semana, durante um mês) e 30 a 40% tiveram, ao longo da vida, uma experiência de insónia transitória (dificuldade em adormecer que pode ir até três semanas e geralmente ligada a fatores de stresse).
Se é certo que os problemas de sono também se devem a outros problemas de saúde e requerem uma intervenção clínica, boa parte das causas que impedem uma noite tranquila tem a ver com o desenvolvimento de competências pessoais e a capacidade de fazer escolhas sensatas, poupando muitas ressacas e sintomas de mal-estar e, até, o recurso a fármacos. Seria assim, num mundo perfeito que, como sabemos, é da ordem da ficção. No mundo real, o desafio é aprender a resolver problemas e foi isso que Kathryn Nicolai fez e conquistou a fama.
Um problema com a solução lá dentro
Formada em Línguas e Literatura, a autora do livro estava longe de pensar na escrita por achar que não tinha jeito. Além disso, vive com uma condição rara, descrita pela primeira vez pelo cientista inglês Francis Galton, na época Vitoriana (em 1880), e que dá pelo nome de afantasia, ou incapacidade de imaginar sons, cheiros e imagens e que permaneceu esquecido até há cinco anos, quando o neurologista britânico Adam Zeman decidiu estudar o problema que se estima afetar entre 2 a 3% da população mundial.
Kathryn crescera num ambiente adverso e acabou por encontrar formas de ter uma vida normal com esta pequena diferença, centrando a sua atenção no mundo que se lhe apresentava, feito de coisas concretas e palpáveis. Quando tinha 20 anos, “tropeçou” numa frase da poetisa Mary Oliver que lhe mudou a vida: “Presta atenção, deixa-te deslumbrar e fala disso”.
Dedicou-se então à prática da atenção plena e do ioga. Nas aulas e fora delas, deu-se conta do crescente número de pessoas que tinham problemas de sono. Adepta de um estilo de vida pacato e pouco dada a ter perfis em redes sociais, ocorreu-lhe, apesar disso, partilhar a experiência, na pele de contadora de histórias. Há três anos, decidiu comprar um microfone e criou o podcast Nothing Much Happens. Treze episódios depois (agora são mais de 75), tinha mais de um milhão de audições e muitos comentários positivos de gente de todos os cantos do mundo.
Inquirida sobre a razão de tanto sucesso sem fazer publicidade, a podcaster admite que estas histórias têm um lado didático, na medida em que podem conduzir à formação de hábitos simples e consistentes que reduzem a ansiedade e promovem a autocompaixão, criando condições para um sono reparador e um estado de vigília mais plena. Et voilà, quando nada acontece, tudo pode acontecer. No mundo das crianças e, em especial, no dos adultos.
ENTREVISTA: Kathryn Nicolai, professora de yoga, podcaster e autora
Quando teve consciência de que era uma contadora de histórias?
Surgiu naturalmente, e desde cedo. Cresci na cidade de Flint, no Estado do Michigan, que não é o melhor dos sítios para se viver, já que é conhecido pela contaminação da água por metais pesados. Nos anos 1980, era um lugar marcado pelo crime e a violência e pobreza e, talvez por isso, eu tenha desenvolvido este mecanismo, contar histórias a mim mesma para sentir-se segura e conseguir relaxar. A prática converteu-se num hábito que me permitia adormecer ou a voltar a entrar no sono quando acordava a meio da noite.
Como surgiu a ideia de fazer um podcast?
Nas aulas de yoga ensino técnicas de relaxamento e uso a voz para ajudar as pessoas a ficarem mais calmas. A certa altura, decidi utilizar as narrativas como forma de meditação e uma fonte de prazer. Fazer um podcast não requer muito esforço nem dinheiro e arrisquei. A maior parte da vida é feita de pequenos momentos: lavar a loiça, fazer uma caminhada, preparar uma refeição. Torná-los mais significativos permite-nos ter uma vida diferente. As minhas histórias celebram esses momentos quotidianos de magia.
Qual o perfil dos que a ouvem e quais os comentários que lhe fizeram chegar?
O podcast alcançou trinta milhões de downloads e recebi relatos de homens e mulheres de várias partes do mundo e de todas as idades, com dificuldades em adormecer. Creio tratar-se de um problema universal, talvez ligado ao stresse, que atinge níveis sem precedentes, mesmo antes da pandemia. Ouvirem a minha voz fê-las sentir que não estavam sozinhas. Pessoas que tinham insónia crónica disseram-me que ao fim de um mês a ouvirem o podcast passaram a ter boas noites de sono. A vida moderna oferece-nos muitas coisas mas não nos dá competências para lidar com a ansiedade e aprender a relaxar.
A ideia do livro é ir além do podcast e desenvolver essas competências?
No livro, as pessoas têm acesso ao mapa e podem situar-se num ponto dele e percorrê-lo quando não conseguem dormir, primeiro a padaria, depois o museu… dar essa tarefa ao cérebro leva-o a desligar a rede de modo padrão (default mode network) que nos mantém em vigília. Seguem a história (um pouco como o contar carneiros) até entrar no sono de uma forma tranquila. Eu já tinha pensado em escrever mas a minha voz interna dizia-me que eu não era suficientemente boa para isso. Com a passagem do tempo, prevaleceu a vontade e ainda bem que foi assim: o livro está publicado em 33 países.
Referiu, num podcast (da coach britânica Joanna Pieters), não ter imaginação. Pode explicar?
Não tenho aquilo que se designa por “olho interno”. A afantasia é uma condição rara e não tratável, que só há cinco anos começou a ser estudada. Consigo imaginar e ter fantasias mas sem a componente visual: se fechar os olhos não visualizo uma maçã ou um rosto, por exemplo, embora saiba o que são e consiga senti-los se os tocar. Muitas pessoas ficam surpreendidas pelo facto de eu conseguir escrever como se tivesse essa capacidade de fantasiar visualmente, mas isso só é possível porque me centro naquilo que os meus sentidos captam no momento.
Levar o móvel para a cama antes de adormecer é algo a que os médicos torcem o nariz. O que pensa disso?
Costumo dizer que a prova esta no pudim! Não se pode ir contra as evidências: pessoas que tinham medo de adormecer e sofriam de ansiedade, stresse pós-traumático ou foram vitimas de abuso sexual, conseguiram dormir e ter as suas vidas de volta. Reconheço a dependência das tecnologias mas neste caso basta ligar a app e colocar o telefone de lado com a luz desligada. Ou ler o livro.
Nos agradecimentos, refere a poetisa Mary Oliver e dedica a obra a Jacqui. Porquê?
Mary Oliver, poetisa americana ligada ao mindfulness, cuja obra admiro. Quando li a frase dela, há vinte anos – “presta atenção, deslumbra-te e fala sobre isso” – senti que era essa a minha vocação e a essência do meu trabalho. No yoga, aprende-se a prestar atenção ao corpo, à respiração e ao momento. Quando se investe nisso os resultados são surpreendentes. Depois, optei pela narrativa sem género porque sou queer e casei com outra mulher. Ao construir as histórias num espaço fictício, queria que todos estivessem representados e se identificassem com o espaço fictício onde todos podem viver.
Quando nada acontece, tudo acontece. Parece um paradoxo. O que acha?
A ideia é usar a história como um cobertor em que apetece envolver-se. A partir do momento em que se entra no registo, os pequenos nadas ganham relevância apenas porque reparamos neles: desfruta-se de um duche quente ou da forma como a luz muda no céu. Essa mudança de perceção reconforta e é muito gratificante. Posso dizer-lhe que fiz 40 anos durante a pandemia. Há quem veja nisso algo menos bom mas eu senti-me orgulhosa: envelhecer é um privilégio que muitos não terão, por isso há que celebrar!