A pele, o maior órgão do corpo humano, é a linha da frente no contacto que temos com o mundo que nos rodeia. Para que este seja feito em toda a segurança, existem equilíbrios naturais que, segundo os especialistas, devem ser mantidos. A falta de higiene pode comprometer esta dinâmica – mas demasiada higiene também.
“No fundo, a pele funciona como uma casa, na qual a epiderme é como uma parede revestida por um reboco, constituído por substâncias como o suor e o sebo, que criam o chamado filme hidrolipídico, uma película à superfície, gerada para nos proteger”, explica João Maia e Silva, coordenador de Dermatologia do Hospital CUF Descobertas, em Lisboa.
Além da proteção oferecida pelos lípidos, resultantes das secreções naturais, a superfície da pele é ainda habitada por um conjunto de micro-organismos, como vírus, fungos e bactérias, que constituem o microbioma ou a flora cutânea. Quando equilibrada, esta mantém a nossa pele saudável e evita a proliferação de bactérias e de fungos nocivos para o corpo humano. “O equilíbrio do microbioma é fundamental para manter o pH da pele, produzir nutrientes e ajudar na prevenção de algumas doenças, nomeadamente a psoríase e a dermatite atópica”, revela a dermatologista Helena Toda Brito.
Nem todas as bactérias habitam as mesmas partes do corpo. Dependendo dos ambientes mais propícios ao desenvolvimento de cada uma, estas existirão de forma mais predominante em determinadas zonas da pele. Além do ambiente, os especialistas explicam que o que determina uma maior prevalência de certas bactérias, em relação a outras, é a competição que existe entre elas. Ou seja: há bactérias boas que roubam o alimento às más, outras que desencadeiam uma resposta imunológica do próprio corpo às bactérias que não nos fazem bem e ainda bactérias benéficas que produzem substâncias a fim de inibirem as patogénicas, “como é o caso da Staphylococcus epidermidis em relação à Staphylococcus aureus”, refere Maia e Silva.
Helena Toda Brito alerta que, “se provocarmos um desequilíbrio ao nível dos micro-organismos habituais, podemos facilitar a proliferação dos patogénicos”. “Em certos casos, como o das candidíases vaginais, a higiene demasiado agressiva pode provocar este fenómeno.”
Liliana Dinis, fundadora da Saponina, marca de cosmética biológica e vegana, partilha da mesma opinião com a dermatologista: “É importante que determinadas bactérias boas sejam apenas controladas e moderadas, para que se mantenham na nossa pele, uma vez que são elas que nos protegem de invasões patogénicas mais graves ou de outras inflamações, como é o caso de eczemas e irritações.”
Pessoas com peles atópicas não devem tomar banho todos os dias
Devemos tomar banho todos os dias?
Com a ascensão da indústria petrolífera e a inclusão de moléculas sintéticas em muitos sabões, o que acontece, ao lavarmos a pele, é que estes atraem realmente as impurezas, mas não conseguem distingui-las dos lípidos naturais, as impurezas boas e necessárias que o nosso corpo produz.
Será, então, benéfico lavarmos repetidamente a pele com produtos desenvolvidos para desinfetar e matar, simultaneamente, as bactérias boas e as más? Tendo em conta o contexto pandémico que vivemos, Helena Toda Brito não tem dúvidas de que “a higienização das mãos nunca deve ser descurada”. “Mesmo que a pele fique mais aflita, há maneiras de compensar. Em primeiro lugar, a segurança; depois, de forma a tentar que não ocorra um distúrbio do microbioma, podemos ter alguns cuidados especiais, como a hidratação imediatamente após a lavagem, de preferência com água morna ou fria, em vez de água quente, e a utilização de produtos suaves, que mantenham o pH da pele e sejam nutritivos.”
De facto, a desinfeção exaustiva das mãos, usada para mitigar o novo coronavírus, tem levado muitos doentes a consultas de dermatologia devido a eczemas da pele seca. “Não são ainda infeções bacterianas, mas é uma situação que deixa a pele destas pessoas mais suscetível ao desenvolvimento de infeções”, avisa o dermatologista João Maia e Silva. No entanto, o especialista também considera que este risco “nunca deve ser apresentado como razão para não lavar as mãos, especialmente numa situação excecional como a que estamos a viver”.
Probióticos, o alimento do futuro
Quanto ao banho, os especialistas são unânimes em afirmar que, no caso de pessoas com uma pele absolutamente normal, sem nenhuma doença de base, tomar banho diariamente não constitui uma agressão excessiva para a epiderme. Já em peles atópicas, com pouca gordura, o caso muda de figura. “Ao lavar este tipo de pele todos os dias, podemos estar a alterar-lhe a flora”, refere João Maia e Silva. Liliana Dinis, que criou a sua marca de cosmética precisamente devido à pele atópica da filha, garante que, “em algumas estações do ano, pessoas com tipos de pele muito sensíveis, que tenham muita dificuldade em repor o seu filme hidrolipídico, deveriam manter uma higiene nas zonas mais íntimas, axilas, pés e mãos, salvaguardando, porém, os braços, pernas, abdómen e costas”.
Quando equilibrado, o microbioma mantém a pele saudável e evita a proliferação de bactérias e fungos nocivos
A preocupação em manter o microbioma da pele equilibrado e a prevalência de bactérias benéficas tem contribuído para que os probióticos tenham começado a ganhar terreno no campo da dermatologia. Com eficácia comprovada ao nível intestinal (ver caixa), recentemente estes organismos vivos começaram a surgir na lista dos ingredientes principais de alguns cremes de rosto e de corpo que prometem repor na pele as bactérias benéficas de que esta necessita.
“Na área da gastroenterologia, a questão dos probióticos é muito trabalhada, porque o intestino é um ambiente onde as bactérias existem em muito maior quantidade em relação à pele”, diz João Maia e Silva. Segundo o médico, “os probióticos ajudam a melhorar a flora da pele, mas se não melhorarmos a função de barreira, as infeções não poderão ser totalmente resolvidas”.
Ainda assim, parece que o tema interessa cada vez mais aos consumidores que, quando já apresentam uma atenção alimentar neste sentido, traduzida no consumo de iogurtes probióticos, kefir ou bebidas fermentadas, como a kombucha, tendem a querer o mesmo tipo de tratamento para a pele. “Há pessoas que fazem em casa máscaras naturais de iogurte, por exemplo”, revela Liliana Dinis. A especialista aponta ainda para a eficácia dos probióticos, quando associados a outros ingredientes, no combate ao envelhecimento. “As fibras da pele envelhecem, enfraquecem e algumas ficam mais inflamadas. Os probióticos podem ajudar a reduzir inflamações desse tipo. Além disso, a riqueza de probióticos numa pele mais envelhecida melhora a própria estrutura cutânea, dando-lhe mais firmeza e elasticidade”, explica.
Um estudo publicado em 2018, na revista Science, chegou a várias conclusões que apontam para a forte probabilidade de o microbioma de certas pessoas poder ajudar na proteção contra o cancro da pele. Os cientistas observaram que a Staphylococcus epidermidis, um tipo comensal de bactérias presente na pele humana, produz uma molécula capaz de inibir a síntese de ADN e a multiplicação celular. Quando injetada em ratos de laboratório, a molécula em questão foi capaz de suprimir o crescimento do melanoma in vivo.
João Maia e Silva considera que “todos os mecanismos que possam inibir a proliferação dessas células ou tirar-lhes a capacidade de invasão local e à distância são, naturalmente, bem-vindos”, mas ressalva que, por agora, “estes estudos limitam-se a indicar um caminho e estão longe de serem utilizados na prática clínica, especialmente porque estamos a falar de uma área em que não se pode falhar”.
Os bons bichos do nosso intestino
O intestino também possui um microbioma, chamado microbiota intestinal, constituído por mais de 100 mil milhões de micro-organismos com funções antibacterianas
Digerir, proteger e preservar
A microbiota (ou flora intestinal) tem uma ação tripla: ajuda na digestão, promove a proteção contra micróbios e toxinas e estimula o sistema imunitário. “A densidade máxima das bactérias encontra-se na zona do cólon, mas, se estiver equilibrada, a microbiota permite prevenir e atenuar futuras doenças do trato intestinal”, explica a nutricionista Teresa Pinto Gonçalves.
Pessoal e intransmissível
A microbiota desenvolve-se desde o nascimento, cresce e evolui com cada ser humano. Apesar de existirem três grandes grupos de composição bacteriana, acredita-se que 80% das espécies dominantes da microbiota de um indivíduo são-lhe próprias, tal como uma impressão digital.
A chave é o equilíbrio
“O nosso problema é que comemos quantidades excessivas de certos alimentos. Se a alimentação for equilibrada, isso refletir-se-á na microbiota”, explica Teresa Pinto Gonçalves. A ingestão de probióticos (iogurtes, kefir, bebidas fermentadas) e prebióticos (presentes na banana, cebola ou alho-francês) pode ajudar a restabelecer o equilíbrio. “Os primeiros são micro-organismos vivos, enquanto os segundos são substâncias não digeríveis que estimulam o crescimento de bactérias benéficas para a microbiota.”