O Ministério Público diz que António Mexia cometeu quatro crimes de corrupção ativa e um de participação económica em negócio em várias contratações e patrocínios decididos pela EDP e que, em contrapartida, terão permitido à empresa de energia lucrar pelo menos 1200 milhões de euros. Mas a lista de crimes imputados ao presidente da elétrica pode não terminar por aqui. Isto porque, apesar de os procuradores que lideram a investigação estarem agora a pedir o agravamento das medidas de coação – que passam por cauções milionárias e até pelo pedido de que Mexia seja suspenso de funções e proibido de entrar nos edifícios da EDP -, a investigação do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) ainda não está concluída. Ao que a VISÃO apurou, há ainda testemunhas-chave para ouvir, informação por receber de alguns ministérios e ainda está por decidir um recurso pendente no Tribunal Constitucional que irá decidir se o ex-ministro Manuel Pinho é ou não é arguido no processo EDP. Sem isso, não poderá haver acusação.
A partir do momento em que o juiz Carlos Alexandre decidir quais as medidas de coação a que ficarão sujeitos António Mexia, presidente da EDP, João Manso Neto, presidente da EDP Renováveis, e João Conceição, administrador da REN, passam a contar oito meses até que elas se extingam (se não houver acusação), pelo que o Ministério Público deverá aproveitar quase a totalidade desse prazo para investigar o que ainda falta, num processo que começou por ser muito técnico e se debruçar apenas sobre as chamadas rendas excessivas da EDP, passou pelos pagamentos do Grupo Espírito Santo a Manuel Pinho (quando este já não era quadro do BES mas ministro da Economia) e nos últimos meses tem-se concentrado noutras contratações feitas pela empresa de energia e que o Ministério Público suspeita serem contrapartidas por decisões importantes que terão beneficiado a elétrica.
Os arguidos têm até 22 de junho para se defender do que o Ministério Público lhes imputa e tentarem recusar as medidas de coação propostas. O juiz Carlos Alexandre, que nesta fase está a conduzir a instrução do processo, prolongou o prazo para as defesas responderem, alegando que os arguidos precisam de tempo para consultar o processo, uma vez que desde 19 de março não o podiam fazer devido às limitações impostas pela pandemia de Covid-19. O juiz decidiu que “face à vastidão dos elementos mencionados na promoção” do Ministério Público, era “forçoso conceder-lhes” um prazo suplementar para que tivessem oportunidade de se inteirar sobre as últimas informações que chegaram ao inquérito.
É que, de facto, esta informação não é pouca. Só durante o interrogatório, António Mexia foi confrontado com 189 páginas que enumeram ao detalhe emails, notas de agenda, de reuniões, encontros, notas e audições no Parlamento que o Ministério Público reuniu para mostrar como existem indícios suficientes para o constituir arguido por suspeitas de cinco crimes.
Os procuradores Carlos Casimiro Nunes e Hugo Neto concluem que Manuel Pinho e João Conceição (hoje administrador da REN, mas antes funcionário do então ministro da Economia, pago pela EDP através da Boston Consulting Group e do BCP), em conjugação de esforços com António Mexia e João Manso Neto, beneficiaram “indevidamente” os interesses da elétrica “em cerca de 1,2 mil milhões de euros”: 339,5 milhões de euros através da “sobrevalorização do valor inicial dos CMEC (Custos de Manutenção do Equilíbrio Contratual) como compensação pelo fim dos contratos CAE celebrados em 1996”, 852 milhões de euros através do “valor da extensão, sem concurso público, da concessão do Domínio Público Hídrico que a EDP não pagou pela continuação da exploração de 27 barragens” e 55 milhões de euros através do “valor de Taxa de Recursos Hídricos que, por despacho governamental do arguido Manuel Pinho, foi considerado pago no âmbito do procedimento do valor da extensão da concessão do DPH”. E foi por causa destes resultados fantásticos da empresa de energia que, acrescenta o Ministério Público, António Mexia e João Manso Neto se mantiveram naqueles cargos de topo durante todos estes anos, com os “inerentes salários, prémios e regalias de vários milhões de euros, ainda concretamente por determinar”.
Encontros com o grupo Lena e a Odebrecht
Como a VISÃO adiantou a 2 de junho, a investigação quer que António Mexia e João Manso Neto sejam indiciados por cinco crimes. Cada um deles está sustentado na promoção do Ministério Público com um relato exaustivo de indícios que inclui, muitas vezes, páginas e páginas de encontros no Ministério da Economia, com hora e data. A maior parte desta informação tem sido fornecida pela secretaria dos ministérios e tem-se juntado a outros elementos que o caso EDP já tinha ido buscar a processos como o BES ou a Operação Marquês, como as agendas pessoais de Ricardo Salgado, também constituído arguido neste processo por suspeitas de ter continuado a pagar uma avença mensal de 15 mil euros a Manuel Pinho (além de outros bónus) quando aquele era ministro da Economia, em troca de decisões governamentais que beneficiassem a EDP, empresa da qual o BES era acionista.
No caso do crime de participação económica em negócio, por exemplo, o Ministério Público alega que a EDP terá desembolsado montantes sem justificação (de cerca de 13 milhões de euros) ao Grupo Lena e à Bento Pedroso Construções (do grupo brasileiro Odebrecht) pela construção da barragem do Baixo Sabor.
O projeto foi formalmente adjudicado pela EDP ao consórcio Bento Pedroso Construções S.A. (subsidiária do grupo Odebrecht)/Lena Engenharia e Construções (Grupo Lena) a 30 de junho de 2008, depois de o mesmo ter sido apresentado cerca de um ano antes por António Mexia e pelo então primeiro-ministro, José Sócrates. José Sócrates defendeu publicamente que “a adjudicação e construção” da barragem do Baixo Sabor “foi da estrita competência da EDP, sem que nelas o governo de então interviesse a qualquer título”. Mas o Ministério Público alega que as provas recolhidas apontam noutro sentido: durante o período de avaliação das propostas para construção da barragem, “responsáveis da Odebrecht foram recebidos pelo menos duas vezes” no Ministério da Economia por uma adjunta de Manuel Pinho: uma dessas vezes foi logo no dia seguinte àquele e a outros quatro consórcios terem apresentado as propostas. Também o Grupo Lena terá sido recebido uma vez por João Conceição e outra pelo próprio Manuel Pinho.
Das empresas que integravam os cinco consórcios que apresentaram propostas, apenas o grupo Lena e a Odebrecht “foram recebidos no gabinete” de Manuel Pinho durante o período de avaliação. Pelo caminho, houve reuniões e almoços entre Manuel Pinho, António Mexia e João Manso Neto. Terá sido a 11 de abril de 2008, dizem os procuradores, que os três terão acertado a adjudicação àquele consórcio, sabendo que o custo final da obra “seria muito superior ao da adjudicação”. Em 2016, a EDP pagou ao consórcio “uma verba extra de 13 milhões de euros de trabalhos a mais”.
Mexia suspeito de “subornar” quatro pessoas
No que toca aos crimes de corrupção imputados a Mexia, o Ministério Público relaciona cada um com uma pessoa: Manuel Pinho, João Faria Conceição, Miguel Barreto e Artur Trindade. A investigação diz que António Mexia corrompeu os quatro, com patrocínios, cargos ou compras de empresas. No caso de Pinho, os procuradores alegam que Mexia “pagou” decisões governamentais favoráveis à elétrica – nomeadamente o fim dos contratos de aquisição de energia e nova legislação sobre os Custos de Manutenção de Equilíbrio Contratual (CMEC) – com um patrocínio de 1,2 milhões de euros da EDP à Universidade de Columbia, em Nova Iorque, que terá permitido patrocinar a carreira académica de Manuel Pinho nos Estados Unidos. Nas 189 páginas que o Ministério Público apresentou a Mexia, durante o interrogatório em que o presidente da EDP preferiu não prestar declarações, não faltam emails a indiciar que foi a EDP quem sugeriu o nome de Manuel Pinho para aquele lugar de professor convidado em Columbia.
Em setembro de 2009, por exemplo, Anya Stiglitz – amiga da mulher de Pinho – reenviou ao reitor da SIPA John Coatsworth um email que Manuel Pinho lhe tinha enviado dizendo “que a Horizon (do grupo EDP) estava disponível para financiar a SIPA se ele estivesse envolvido no desenvolvimento de um programa relacionado com energia e que apenas uma pequena parte do dinheiro do financiamento seria para pagar os seus salários”. A 8 de outubro, o reitor da SIPA enviou um email a Pinho dando conta que “segundo percebia, a Horizon estava preparada para financiar a SIPA em USD$300.000,00 anualmente durante cinco anos, montante do qual seria pago o salário” de Pinho. Essa doação da EDP acabaria por concretizar-se por um período de quatro anos, tendo como contrapartida a contratação de Pinho como “visiting professor”.
A segunda suspeita de corrupção envolve Miguel Barreto, antigo diretor-geral da Energia e Geologia, que durante o tempo em que esteve nesse cargo assinou uma licença de exploração da central térmica de Sines que terá beneficiado a EDP em milhares de euros. E que, uns anos mais tarde, em 2010, terá vendido parte de uma empresa que detinha com a Martifer (a Home Energy) à EDP, por quase 1,5 milhões de euros. Pelo meio, diz o MP, terá transmitido informação confidencial do governo relativa aos dossiês que envolviam a EDP. A investigação aplica a mesma lógica de partilha de informação confidencial a João Faria Conceição, António Mexia é também suspeito de corrupção ativa numa história que envolve João Faria Conceição, que trabalhou com Manuel Pinho no Ministério da Economia até 2008 e conseguiu um emprego no BCP cerca de um mês depois de ter enviado um email ao presidente da EDP com o seu currículo e as condições em que exigia ser remunerado. Recorde-se que, à data, o BCP era o maior acionista privado da empresa de energia. Pelo meio, sabe-se que enquanto trabalhava para Manuel Pinho João Conceição apenas declarou rendimentos do BCP e da consultora Boston Consulting Group (BCG), nunca tendo sido oficialmente contratado pelo governo.
Por fim, António Mexia é suspeito de um quarto crime de corrupção ativa por a EDP ter contratado para a elétrica, em 2013, o pai de Artur Trindade, ex-secretário de Estado da Energia do governo de Passos Coelho. O filho, com o mesmo nome, assumiu a pasta da Energia em abril de 2012 e o pai foi contratado mais tarde pela EDP para o Comité de Acompanhamento das Autarquias.