Como dar mostrar ao mundo algo que, a olho nu, é absolutamente invisível? Um inimigo que não pode ser visto, ouvido ou tocado? A tarefa foi entregue a cientistas e ilustradores, que se socorreram dos mais variados softwares de modelagem. Mas, no fim, a imagem do coronavírus da Covid-19 como a conhecemos resulta tanto da forma que aparenta ao microscópio como de outras escolhas mais artísticas.
A explicação ao detalhe vem na Paris Review, uma das mais conhecidas revistas literárias inglesas, que foi ouvir alguns dos ilustradores que, nestes meses de pandemia, responderam a essa demanda. Foi, por exemplo, o caso de Alissa Eckert e Dan Higgings, cuja arte está ao serviço do Centro de Controlo de Doenças, em Atlanta, nos EUA, chamados ao serviço ainda no mês de janeiro. Eckert apresentou então este glóbulo redondo, com a superfície coberta por proteínas “spike”, pequenos filamentos pontiagudos, cujo formato lhe dá um aspeto de coroa e deu, assim, o nome a este grupo de vírus. Quem estava presente considerou logo que era um tiro certeiro – como quem diz, uma ideia que representava na perfeição o tal inimigo invisível.
“De facto, foi um desenho a que todos aderiram”, considerou Eckert, citada também pelo New York Times, e desde então aquela ilustração inundou as notícias sobre o assunto um pouco por todo o mundo. E os elogios de outros colegas não demoraram: “Além de ser científico, é muito bonito”, palavras de Timothy Mastro, que já foi diretor de ciência na área da prevenção do VIH/Sida. “Tem um design atraente, uma certa simetria. Já o Ébola não é mais do que um pedaço de esparguete retorcido, não é de todo tão atraente como este…”
O vírus como ele é…
Não que seja propriamente um caso inédito. Mastro lembrou-se logo do que acontecera com as representações artísticas do VIH, o vírus da imunodeficiência humana, no tempo em que era aquele que enchia posters de conferências e capas de revista.
A imagem era também uma esfera repleta de proteínas com cravos – o que dava um certo caráter à doença que então ocupada a cabeça de investigadores em todo o mundo. Mas a grande preocupação era também, claro, conhecer a aparência do vírus real – fosse qual fosse.

Foi então que entrou em campo um processo chamado cristalografia de raios-X. Uma técnica que consiste em fazer passar um feixe de radiação eletromagnética pela molécula do vírus, que se difunde depois em várias direções devido à simetria daquele agrupamento de átomos. E que goza do maior prestígio na comunidade científica, sempre que é preciso estudar estruturas cristalinas.
…e alguma liberdade artística
O resultado era, no mínimo, estranho, como se fosse a revelação de um rolo de filme dos anos 1950 sobre germes ou algo assim. Mas o que os cientistas viram foi o vírus como ele era, com os seus espinhos e o corpo esférico. Mastro, segue ainda a Paris Review, explicou também a importância de o desenho incluir as proteínas cravadas na coroa do vírus – são elas que se ligam aos recetores do lado de fora das células saudáveis, para que o vírus possa tomar o corpo da célula e usá-lo para se replicar. A tudo isto juntaram-se ainda algumas liberdades artísticas, claro. E isso fez também com que agora o coronavírus tenha uma série de versões diferentes.
Oiça-se então o que contam Nick Klein e Jamie Vitzthum, outra dupla de ilustradores científicos americanos que se debruçou particularmente sobre os picos da coroa do coronavírus. “As nossas escolhas editoriais, em cores e em estilo, procuraram sublinhar a complexidade estrutural e a configuração agressiva das proteínas do vírus. Mas queríamos também que revelasse como a sua natureza é frágil fora do corpo”, relata Klein. Como se assim se pudesse sublinhar que, apesar do medo, morte e tragédia que este SARS CoV-2 causou, não sobrevive por si só – e que a humanidade pode superar isso.
Imagem de marca
Claro que nem todos os ilustradores têm esta mesma perspetiva – como assumiu Melanie Connolly, que faz animação biomédica numa empresa do Texas, também nos EUA. Espreitando o seu site oficial, parece arte no seu estado mais puro. “Para mim trata-se de um organismo vivo, independente de precisar de um hospedeiro”, o que a faz reproduzir o vírus sempre em tons roxos e azuis pastel. Cores que, no seu entender, ajudam a transmitir essa ideia.

Na verdade, tudo isto acabou por se tornar uma espécie de corrida para alcançar o que poderá ser a imagem de marca do coronavírus. Que o diga Jane Whitney, ilustradora científica canadiana – que devolveu ao mundo um retrato bidimensional e altamente estilizado. “Não é que tenha ignorado a visualização molecular, mas é mais uma representação abstrata”, sublinhou a artista.
Uma perspetiva partilhada também, por exemplo, por Jonathan Corum, que ilustrou o vírus para o New York Times. A sua preocupação era igualmente produzir uma versão que fosse de fácil compreensão para uma ampla audiência. Mas que não deixasse de ser rigorosa em termos de estrutura molecular: “Como é um vírus cuja nome deriva da sua auréola em forma de coroa fazer ajustes nos espinhos é uma forma de lhe dar personalidade.”
Função tranquilizadora
O movimento acabou por se tornar transversal a todo o universo de ilustradores científicos. Veronica Falconieri Hays, por exemplo, criou mesmo um gráfico detalhado do vírus de fundir e infetar células saudáveis. Mas ao contrário do trabalho de outros, optou por apresentar uma imagem tridimensional, que possa também ser uma referência para outros, sejam colegas ilustradores, médicos ou cientistas.
A sua inspiração? Além do modelo oficial usado pelo Centro de Controlo de Doenças, o conhecido CDC, Falconieri Hays recorreu ainda a uma ilustração de um professor de biologia computacional chamado David Goodsell. Conhecido por já ter produzido imagens impressionantes de vírus como o Ébola, o Zika e o VIH, Goodsell visita regularmente um site de visualização de proteínas chamado Protein Data Bank, além do conhecido PubMed, para pesquisar os vírus antes de os desenhar. Daí surgiu um método que parte do todo para o particular, rematando depois a pintura com aguarelas.

“É uma abordagem muito semelhante à do cartoon, sem esquecer a sua função tranquilizadora”, considerou, num artigo do Journal of Biocommunication. Como quem diz: deve ser o mais preciso possível, sem deixar de ajudar as pessoas a entender os processos biológicos em questão. É que, insiste, “as coisas parecem menos assustadoras quando são coloridas”.