Helena Garrido, 41 anos, desce as escadas do prédio onde vive, no Porto, com um saco na mão, cheio de tupperwares. Hoje, levam cozido à portuguesa. Não falta nada: couves, enchidos, vários tipos de carnes e arroz feito com a água das cozeduras.
São 19h45 quando deixa as caixas plásticas na bagageira do carro de família, estacionado à porta de casa. Quinze minutos depois, Eduardo Garrido, 41 anos, sai do trabalho, entra no carro e leva consigo o jantar que a mulher lhe preparou, e que irá comer sozinho. Na manhã seguinte, as caixas farão a viagem de regresso, já vazias.

A cena repete-se todos os dias, ou melhor, nos dias em que Eduardo está de turno no Centro Educativo de Santo António, onde trabalha, uma instituição que acolhe jovens entre os 12 e os 16 anos, autores de “factos qualificados pela lei como crime”. Mesmo nesta altura de pandemia há sempre jovens a chegar, e alguns, conta, “quando lhes passam para a mão um termómetro para tirarem a febre, nem sabem o que aquilo é.” Mas esse é outro assunto.
“Não se trata só de comida”
Para diminuir os riscos de contágio de Covid-19 – tanto no emprego como na família –, nos dias em que está a trabalhar, que podem ser cinco ou sete, prefere manter-se isolado, por isso, vai dormir a casa de um familiar, que tem estado vazia. Demasiado vazia, admite. Não fica longe dali, mas isto da distância, já se sabe, é relativo.
Quando ali chega, à noite, sabe-lhe bem abrir as caixas para descobrir o que Helena lhe reservou. “O melhor até hoje? Talvez um ensopado de borrego”, arrisca. Às vezes, encontra uma surpresa: uns morangos ou o seu sumo preferido. Pequenos nadas que, por estes dias, garante, sabem a muito. “Não se trata só de comida, mas de saber que a Helena a fez para mim. Namoramos através dos tupperwares”, atira, a rir-se. Não, até hoje nunca encontrou um bilhetinho amoroso. “Digamos que o mimo através dos sentidos… E da barriga!”, acrescenta a mulher, bem-humorada.
Nesta altura, Helena pede uma pausa para desfazer equívocos. “Não quero que fiquem com a ideia errada de que, por ser mulher, sou eu que faço sempre a comida. Somos ambos bons chefs e, quando está em casa, é ele quem cozinha para mim.” O marido confirma: “É um dos nossos rituais. Assim como é à mesa, enquanto comemos, que conversamos, discutimos e nos organizamos enquanto família. Fazer as refeições juntos dá-nos prazer.”
Por isso, nas semanas em que está de turno, custa-lhe regressar à noite para uma casa às escuras, e nem as videochamadas regulares são capazes de matar as saudades. “Sinto falta da minha mulher e dos meus filhos mas, quando me sinto mais sozinho, penso que estou a fazer isto por todos nós e pela comunidade. Não é um isolamento total, nem sequer uma quarentena, digamos que é o nosso plano de contingência familiar.”
Calamidade 0-1 Romance
No apartamento do casal, onde também se mantém recolhida, saindo só para tratar de assuntos profissionais, Helena não está sozinha. Tem a companhia dos filhos, Gabriela e Eduardo, mas lá acaba por dizer, com uma certa ironia, que “como adolescentes que são, estão confinados no quarto.”
Há noites em que adormece no sofá porque não gosta de se deitar numa cama vazia. Conheceu Eduardo na faculdade, e após 20 anos de casamento, que irão comemorar no dia 8 de dezembro, há rotinas difíceis de quebrar. As séries que via à noite com o marido, os dois enroscados em frente à televisão, também ficaram em stand-by, até que Eduardo regresse a casa. “Não avanço episódios, espero para os vermos juntos.”
Quis o destino, entretanto, que o aniversário de Helena, celebrado há dias, calhasse numa semana de folgas do marido. Por isso, claro está, houve almoço especial, pela mão do chef Eduardo. Bacalhau à Zé do Pipo, o prato de eleição da aniversariante. “É outro ritual cá de casa: quem faz anos escolhe o que se come!” Não houve velas, é verdade, mas a mesa estava enfeitada com as flores preferidas de Helena: túlipas. É que isto de ser romântico não é uma calamidade. Pelo contrário, é uma emergência.