Naquela semana de agosto, Elizabeth Hancock foi vista a enterrar sozinha o marido e seis dos seus filhos. Uma e outra vez, cobriu o nariz com um lenço para aguentar o cheiro dos corpos em decomposição, atou-lhes cordas aos pés e arrastou-os até uma vala, aberta o mais longe possível das casas da aldeia. Imaginamo-la a parar inúmeras vezes no caminho e a engolir as lágrimas, desesperada mas decidida.
Há um ano que a peste negra matava gente que nem tordos na sua aldeia, no Norte de Inglaterra. Os primeiros sintomas eram sempre os mesmos: o doente começava por ter febre muito alta e aparecia-lhe um furúnculo doloroso, do tamanho dum ovo, na virilha ou na axila. Ao segundo ou terceiro dia, o seu corpo ficava coberto por esses “bubões” que acabavam por rebentar, deixando sair o pus. Quando isso acontecia, a dor e a febre diminuíam, mas logo surgiam manchas escuras na pele, por causa das hemorragias, e a morte era quase certa e rápida.
Nesse agosto de 1666, Elizabeth e os restantes sobreviventes em Eyam, na região de Derbyshire, já sabiam, por isso, como deviam sepultar os seus mortos – tinham de evitar a todo o custo tocar-lhes diretamente. Ainda assim, a bactéria Yersinia pestis, invisível a olho nu mas insidiosa, havia de roubar a vida a 267 dos cerca de 350 habitantes da aldeia. E os que ficaram para contar a história dos catorze meses de epidemia são ainda hoje apontados como heróis.
Não é exagero. Não fosse terem-se autoimposto uma quarentena, mantendo-se dentro de um perímetro delimitado por uma barreira de pedras, e a peste negra, que até então estava circunscrita ao Sul do país, ter-se-ia disseminado pelo Norte. O isolamento a que se sacrificaram é apontado como um dos principais motivos para a interrupção da doença que, entre 1664 e 1666, só em Londres matou cerca de 100 mil pessoas, então um quinto da população da cidade.
Durante a quarentena, que foi sugerida pelo padre anglicano de Eyam e durou vários meses, nenhum habitante, doente ou saudável, podia ultrapassar aquela barreira de pedras erguida a menos de um quilómetro das suas casas. Ela estava aqui e ali interrompida por pequenos buracos, através dos quais os moradores das aldeias vizinhas faziam passar mantimentos a troco de moedas molhadas em vinagre. Uns e outros acreditavam que o vinagre funcionava como desinfetante, assim como juravam pela eficácia das ervas que colocavam nos lenços com que cobriam a cara.
Havia, então, a crença de que as doenças eram transmitidas pelo ar. Hoje, sabe-se que a peste negra chegara ali nuns fardos de tecido infestados por pulgas portadoras da bactéria. Uma semana depois de a encomenda feita em Londres ter entrado no atelier do alfaiate Alexander Hadfield, morria o seu assistente, George Viccars. E toda a família daquele que agora chamaríamos de “paciente zero” havia também de adoecer e morrer, entrementes infetando a vizinhança.
Depois de vitimar grande parte da população de Eyam, a peste desapareceu tão de repente como apareceu, mas a aldeia demorou algum tempo a regressar à sua atividade principal, a mineração de chumbo. Em Londres, a epidemia também afetaria o comércio durante vários anos. O grande incêndio de setembro de 1666, que em apenas quatro dias deixou em cinzas o centro da cidade, não ajudou, mas foram as políticas governamentais de contenção da doença que mais mossa fizeram na economia local. Os bens que aportavam à capital do reino eram destruídos ou sujeitos a uma quarentena e, no pico da epidemia, grande parte das lojas fechou por falta de mercadoria ou de empregados.
Essa foi a terceira vez que a peste negra assolou a Europa, alterando drasticamente o dia a dia dos seus habitantes. Três séculos antes, entre 1346 e 1353, estima-se que a mesma bactéria Yersinia pestis tenha dizimado 30% a 60% da população do Velho Continente (matando 75 a 200 milhões de pessoas em todo o mundo). Com a extinção de grande parte da força de trabalho, a procura de mão de obra fez subir tanto os salários, que alguns historiadores olham para esses anos como um momento de viragem no desenvolvimento económico europeu.
A praga do imperador
Faz sentido. Se regressarmos por um instante à atualidade, vemos como a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento (OCDE) acabou de cortar a projeção do crescimento da economia mundial para 2,4% em 2020 (meio ponto menos do projetado em novembro), justificando a alteração com a “grande perturbação” económica trazida pelo surto de coronavírus. “As contrações da produção na China estão a ser sentidas a nível mundial, refletindo o papel fundamental e crescente do país nos mercados globais de cadeias de distribuição, viagens e nos mercados de commodities”, lê-se no relatório Coronavírus: a Economia Mundial Ameaçada, que a OCDE publicou na segunda-feira, 2 de março. E esse é o melhor dos cenários, porque no pior deles o surto de coronavírus pode vir a cortar a projeção de crescimento para metade.
Se é verdade que as grandes epidemias têm efeitos no andamento do mundo, a peste bubónica – que se tornou conhecida como negra – foi um dos atores mais importantes da nossa era. Logo na primeira vez de que há notícia da sua chegada à Europa, no remoto ano de 541, matou entre 25 e 100 milhões de pessoas e acabou com o sonho de um imperador.
Desde 527 que Justiniano I estava em campanha para recuperar as antigas fronteiras do Império Romano que, no final do século III, fora dividido em dois. A parte oriental sobrevivera, mas a ocidental, Roma incluída, caíra nas mãos dos bárbaros. Partindo de Constantinopla, então a capital do chamado Império Bizantino, Justiniano e os seus generais ainda conseguiram retomar toda a Itália, mais o Norte de África e parte da Península Ibérica, mas a reunificação de Roma durou pouco. Uma doença então de origem desconhecida iria infetar desde logo os soldados, deitando por terra os ambiciosos planos de reconquista.
Hoje já se sabe que a peste negra – que dessa vez ficaria para a História como a praga de Justiniano – foi transmitida pelas pulgas que tinham vindo nos ratos a bordo de navios carregados de grãos oriundos do Egito. A doença chegou a Constantinopla em 541 e, até 544, matou entre 500 mil e um milhão de pessoas só na capital do império, espalhando-se rapidamente desde o mar Mediterrâneo até à Escandinávia.
O imperador bizantino e a sua mulher, Teodora, também ficaram infetados, mas escaparam com vida, para espanto de muitos dos seus súbditos, que viam a peste negra como uma punição divina pela promiscuidade da imperatriz, antiga atriz, bailarina e prostituta. Só no final do século XV é que os médicos tiveram a noção de que havia alguma coisa que se transmitia.
Em 545, Justiniano ver-se-ia obrigado a assinar um acordo de paz com os persas que, entretanto, também haviam contraído a doença durante a guerra. Na opinião de alguns historiadores, a vulnerabilidade dos dois povos terá facilitado as conquistas muçulmanas a que o mundo assistiu nos anos seguintes.
Recentemente, investigadores finlandeses demonstraram que uma mudança drástica no clima da Terra, no século VI, pode ter agravado as consequências da praga de Justiniano. Segundo um estudo publicado em janeiro de 2018, no jornal Scientific Reports, uma série de erupções vulcânicas tornou a sobrevivência mais difícil no Império Bizantino, sobretudo no ano de 536 e entre 541 e 544.
Uma equipa de cientistas do Laboratório de Cronologia do Museu de História Natural Finlandês e do Instituto de Recursos Naturais Finlandês (Luke) descobriu que, nessas datas, o Sol esteve encoberto durante longos períodos de tempo por partículas sólidas minúsculas que ficaram em suspensão na atmosfera. Essa redução da incidência da luz solar terá afetado a produtividade das plantações e da pecuária, e comprometido o sistema imunológico das populações, que ficaram mais suscetíveis a doenças por causa da carência de vitamina D.
O ambiente seria também propício à propagação de doenças oitocentos anos mais tarde, quando a peste negra fez a sua segunda entrada na Europa. Os invernos rigorosos que precederam a década de 1340 tinham dizimado as colheitas, deixando as populações rurais famintas. A alternativa era rumarem às cidades, já sobrelotadas, na esperança de ali encontrarem trabalho e comida.
Se pensarmos como eram as grandes urbes europeias em meados do século XIV, não ficamos admirados com a mortandade provocada pela Yersinia pestis. O sistema sanitário romano fora destruído, incluindo as latrinas, os canais de esgotos e as termas para banhos públicos. As águas sujas, de todo o género, eram, então, despejadas nas ruas, constantemente percorridas por porcos que iam comendo tudo o que apanhavam pelo caminho – cadáveres incluídos.
Com a chegada da peste, os mais ricos corriam a refugiar-se nas suas propriedades no campo. A sua morte era menos certa do que no caso dos mais pobres. Afinal, alimentavam-se adequadamente e viviam com melhores condições de higiene. Havia, por isso, quem acreditasse que se tratava de uma estratégia concertada da nobreza para enviar a plebe para o Inferno.
Ressurgiu também a ideia de que a peste negra aparecera como uma punição de Deus, à imagem do que se acreditara quando a lepra invadira a Europa no século XI. Contrair a doença era sinal de pecado, sendo que os pecadores morriam sem que alguém os aliviasse desse peso – nem os padres se aproximavam dos moribundos. O fanatismo religioso subiu de tal maneira de tom que, em 1348, a Irmandade dos Flagelantes organizou mil marchas na Alemanha. Ao longo de 33 dias, grupos de homens autoflagelaram-se violentamente com cintos de couro cravejados de ferro para assim ganharem a proteção de Deus contra a sua ira.
Os efeitos da ignorância
Essa e outras crenças iriam grassar durante aqueles anos de horror, cavalgando o desconhecimento da origem da doença. Na dúvida, as populações olhavam os estrangeiros de lado. Relatos da época mostram que, em Portugal, apontava-se o dedo aos peregrinos religiosos e, em Espanha, aos árabes. Já no Norte da Europa, as culpas recaíam principalmente sobre os judeus, acusados de envenenarem os poços de água. As bulas do Papa Clemente VI, que em julho e setembro de 1348 isentaram oficialmente os judeus da responsabilidade no contágio, não evitaram que milhares deles fossem mortos um pouco por todo o lado.
À época, corriam notícias de que a peste tivera origem geográfica na Ásia. Os viajantes da Rota da Seda, iniciada 600 anos antes, contavam que já em 1330 havia gente a morrer no deserto de Gobi, entre a Região Norte da China e a Mongólia. Dali, a doença teria ido até à península da Crimeia, no mar Negro, levada por mongóis que atacaram o grande entreposto comercial de Caffa, propriedade de um genovês. De Caffa, seriam, depois, mercadores genoveses e venezianos a espalhá-la a partir de Messina, um porto na Sicília. Além dos mercadores, que arrancavam em viagem sem saber estar infetados, os ratos e as pulgas foram vetores da contaminação.
As notícias da época eram fundadas. Em dezembro de 2010, um grupo de cientistas da Irlanda, da China, de França, da Alemanha e dos Estados Unidos da América revelou que esta segunda leva de peste negra se propagou pelo mundo a partir da China. Num artigo publicado no jornal médico Nature Genetics, os investigadores reconstituem as rotas de diferentes epidemias, a partir da sequenciação genética das bactérias. No caso da Yersinia pestis, que foi isolada em 1894, pelo francês Alexandre Yersin, concluíram que no século XV ela havia de também migrar para África, importada pelo navegador chinês Zheng He.
Na Europa, há um claro “antes e depois” desta epidemia. Sempre que os historiadores se referem à segunda incursão da peste negra pelo Velho Continente, lembram como França e Inglaterra fizeram umas tréguas temporárias na Guerra dos Cem Anos ou como o sistema feudal britânico ruiu. Ou, ainda, como os vikings perderam gás nas suas conquistas.
O mesmo se pode dizer daquilo que aconteceu, em meados do século XVI, nos territórios que hoje fazem parte da Guatemala e do México. Mais do que as guerras com os espanhóis, foram as duas epidemias, ocorridas em 1545 e em 1576, que mataram o maior número de nativos: cerca de 15 milhões. Mas, mesmo aí, não podemos retirar o colonizador da equação.
No início deste milénio, ainda se aventou a hipótese de os dois surtos de cocoliztli (uma palavra da antiga língua nauatl, usada pelos astecas, que significa “mal”) terem sido causados por um tipo de hantavírus indígena, ampliado por uma grande seca e pelo stresse da colonização. Mas, em janeiro de 2018, uma equipa internacional de cientistas estimou que esse “mal”, que acabou por dizimar 50% a 80% da população, era salmonela, muito provavelmente trazida com os animais que os espanhóis levavam nos seus barcos.
“Não podemos ainda saber geneticamente se esta Salmonella enterica serovar Paratyphi C veio da Europa ou se já existia no México”, admitiu a principal autora do estudo, Åshild Vågene, especialista em arqueogenética do Instituto para a Ciência da História Humana Max Planck, na Alemanha. Mas “há evidências circunstanciais”, sublinhou na revista científica Nature, Ecology and Evolution, porque não foram encontrados vestígios dela em mortos antes da chegada dos espanhóis.
Um sofrimento atroz
A comunidade científica pela-se por um bom mistério, já se sabe. E se houve epidemia que lhe interessou foi a primeira de que há registo na modernidade – a chamada peste de Atenas, que atingiu a pólis grega entre 430 e 429 a.C. e em 427 a.C., contribuindo para o fim da Idade de Ouro da Grécia. Ébola? Peste bubónica? Dengue? Gripe? Sarampo? Afinal, qual foi a doença que matou uma grande parte da população de Atenas, sobretudo durante o cerco das tropas espartanas?

“Se alguém já estava doente, a sua enfermidade transformava-se na peste. Os outros, sem nenhum sinal de aviso, eram tomados inicialmente por um forte calor na cabeça, vermelhidão e inflamação dos olhos. As partes internas, como a garganta e a língua, ficavam sanguinolentas e emitiam um hálito fétido e repugnante. Esses sintomas eram seguidos por espirros e rouquidão, e logo depois a doença descia ao peito, manifestando-se por uma tosse violenta. Depois, fixava-se na boca do estômago, revolvendo-o; e seguiam-se descargas de bílis de todos os tipos catalogados pelos médicos, acompanhados por sofrimento atroz.”
Esta descrição foi-nos deixada por Tucídides, na sua História da Guerra do Peloponeso. Mas Tucídides era historiador e não médico. Por melhor que soubesse descrever os sintomas da epidemia que acabou por vitimar o próprio líder ateniense, Péricles, foi preciso chegarmos a 2006 para o mistério ser resolvido. Nesse ano, uma equipa de investigadores da Universidade de Atenas analisou dentes recuperados de uma sepultura coletiva escavada na cidade, confirmando a presença de Salmonella entérica serotipo Typhi, a bactéria que causa a febre tifoide.
Tucídides, sempre ele, escreveu que a peste de Atenas chegou ao porto de Pireu vinda da Etiópia. Já em relação à epidemia mortífera mais recente – a gripe espanhola de 1918 –,são várias as teorias sobre a sua origem. Em março desse ano, houve um primeiro caso registado num acampamento militar no Kansas, nos Estados Unidos da América, mas também há referências a soldados indochineses doentes que lutaram em França, logo no início da Primeira Guerra Mundial.
Certo é que esta estirpe do vírus Influenza A do subtipo H1N1 contaminou cerca de 500 milhões de pessoas em todo o mundo, acreditando-se que 50 a 100 milhões tenham morrido em consequência dele. E que nunca mais ninguém olhou a gripe como uma doença inofensiva.