“O juramento de Hipócrates, que é a essência de qualquer médico, não nos permite aceitar a eutanásia”. A frase é de Germano de Sousa, antigo bastonário da Ordem dos Médicos e, acredita a generalidade das pessoas, aplica-se a todos os que, no início da profissão médica, proferiram aquelas palavras. Mas, espante-se – ou talvez não… – nem todos aqueles profissionais de saúde são contra a despenalização da eutanásia, como avançava já em 2007 um estudo feito pela Serviço de Bioética e Ética Médica da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto: dos 450 profissionais que ouviu, 40% diziam-se a favor. E não é caso único.
Um outro estudo mais recente aponta no mesmo sentido. Desenvolvido pelo Cintesis – Centro de Investigação e Tecnologias e Serviços de Saúde, e publicado na revista iberoamericana de Bioética, indica que 55% dos médicos são a favor da despenalização. “Há claramente uma mudança geracional. Hoje, muitos médicos, sobretudo os mais novos mas não só, mostram-se mais abertos ao respeito pela autonomia e à questão do sofrimento do doente, enquanto parte de uma geração mais velha se mantém fiel a uma tradição judaico-cristã”, nota Miguel Ricou, professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e presidente da Comissão de Ética da Ordem dos Psicólogos, que coordena ainda a plataforma europeia Wish to Die, com o propósito de estudar o tema de forma o mais aprofundada possível.
Vários outros médicos e profissionais de saúde vieram mesmo a público dizer que eram a favor da despenalização. Seja na petição lançada agora ou na que foi conhecida há dois anos, na qual já constavam nomes como Manuel Sobrinho Simões, patologista que em 2015 chegou a ser considerado o mais influente do mundo; Júlio Machado Vaz, o conhecido médico psiquiatra, ou Machado Caetano, clínico que durante anos esteve à frente da Comissão Nacional de Luta contra a Sida; ali constava ainda o nome de Constantino Sakellarides, que foi diretor para as Políticas e Serviços de Saúde da OMS e também Diretor-Geral da Saúde, ou ainda o agora presidente da Cruz Vermelha, Francisco George. Mais recentemente, Graça Freitas, a atual Diretora Geral da Saúde também revelou não se opôr à prática, mas sim ao “prolongamento agressivo” da vida de uma pessoa.
Tanto Manuel Sobrinho Simões como Júlio Machado Vaz acederam mesmo a dar a cara num vídeo, lado a lado com uma série de outras figuras públicas, a saber: a atriz Rita Blanco, o apresentador Manuel Luís Goucha, o humorista Bruno Nogueira, o cineasta António-Pedro Vasconcelos, a presidente da Fundação José Saramago Pilar del Rio, o cantor Fausto, o advogado Rogério Alves, entre muitos outros.
Oiça-se então outra médica que já teve responsabilidades públicas. Falamos de Ana Jorge, ex-ministra da Saúde entre 2008 e 2011, que há dois anos veio a público dar a cara pela causa da despenalização da prática da eutanásia ao aceitar, ao lado do político do PSD José Eduardo Martins, apresentar o livro “Morrer com dignidade – a decisão de cada um”, organizado pelo também médico João Semedo (que morreu, entretanto).
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“A despenalização procura respeitar a liberdade de escolha. É isto que está em causa”, reafirma agora à VISÃO Ana Jorge, defendendo que a lei deve estar regulamentada. “Não se trata da banalização da morte. Morrer com o menor sofrimento possível é um direito que as pessoas têm”, acrescenta, considerando, claro, que o processo deve ser acompanhado de todos os cuidados. “O parecer final de ser de vários médicos. É preciso haver uma equipa envolvida”, segue a especialista, a lamentar que se esteja a confundir o debate ao contrapor a eutanásia aos cuidados paliativos. “Um não invalida o outro. Aliás, muitas vezes, os médicos esquecem-se de referenciar os seus doentes para aqueles cuidados e não é sempre porque não há vagas”, aponta ainda Ana Jorge, a defender que os paliativos não têm de ser apenas para doentes terminais. “O erro é considerar que os paliativos são para quando não há nada a fazer. Há sempre algo a fazer: nem se que seja reduzir o sofrimento e proporcionar um fim de vida com a maior dignidade possível.”
A Bruno Maia, médico neurologista no Hospital São José, em Lisboa, e ativista pela morte assistida, o que mais o choca é que a Ordem dos Médicos esteja a tomar posição em nome dos 50 mil clínicos que há no país. “É que, com um número destes, a diversidade é enorme”, aponta o especialista, lembrando que, quando há eleições na OM, o tema da eutanásia nunca está em cima da mesa, nem consta de qualquer programa.
Além do estudo acima citado, Bruno Maia recorda ainda um outro inquérito feito pela Ordem na região norte a 1200 médicos em que a maioria também se dizia a favor da eutanásia. Cuidados paliativos? “É uma falsa discussão. Uma coisa não anula a outra. Aliás, se pensarmos nos resultados de outro estudo, desta vez feito na Bélgica, em que 76% das pessoas que pediram eutanásia estava em cuidados paliativos, compreendemos bem que não é isso que as demove”, conclui.
Passe-se, então, a palavra a um oncologista. Jorge Espírito Santo, médico, mas também sobrevivente de cancro, e por tudo isto, faz questão de dizer, pessoa que defende a eutanásia: “sei na pele o que é receber más notícias e por isso também sei o que gostaria que me acontecesse caso ficasse numa situação de sofrimento irreversível”. Mas, depois de feito este ponto de honra, aquele clínico faz também questão de sublinhar que não é caso raro.
“Nada disso: os últimos números dizem que já há uma grande maioria de oncologistas que defendem a despenalização e cada vez que se ausculta a sociedade também se fica a saber que boa parte é a favor da prática”, reafirma Jorge Espírito Santo, chefe de serviço de carreira do Centro Hospitalar Barreiro/Montijo e ex-presidente do colégio de especialidade de oncologia médica na Ordem dos Médicos.
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No seu entender, o que vivemos é um país dividido entre os que vêm a sua opção respeitada e os outros – alegando que não há razões para isso. “Qualquer opinião é legítima”, insiste, refutando que se invoquem os cuidados paliativos como mera alternativa. “Devo dizer que tenho pós-graduação em cuidados paliativos e exijo tudo, mas tudo, para os meus doentes. Não os abandono nas suas escolhas e entendo que também não os devo abandonar em situações que não sou eu que controlo”.
“Trata-se de dar o poder de decisão ao doente”, considera ainda aquele especialista. “Talvez para muitas pessoas fosse mais fácil ser o médico a decidir porque ainda têm uma visão muito paternalista da profissão”, reconhece. E se ainda assim, a legislação não passar? “O debate deve continuar.”
Não, não e não: Aqui não haverá eutanásia
Os grupos CUF e Luz Saúde já fizeram saber a sua posição
“A José de Mello Saúde considera a vida humana como o primeiro e o mais elevado de todos os valores, prevalecendo sobre os interesses da Ciência e da Sociedade, considerando que nem tudo o que é tecnicamente possível é aceitável. A técnica, ainda que fundamental, é apenas um dos valores a considerar quando se toma posições sobre a vida das pessoas”, pode ler-se em comunicado interno ao qual a VISÃO teve acesso.
“Esta opção”, lê-se ainda, “não constitui de forma alguma, qualquer limitação à qualidade do desempenho técnico e científico dos profissionais de saúde da rede CUF”, rematando que é uma posição “baseada no respeito pela pessoa humana, como um sujeito de direitos e não um objeto das intervenções médicas e com uma dignidade intrínseca e constitutiva que nenhuma doença, em nenhuma fase, afeta, diminui ou anula.”
A mesma posição foi já confirmada pelo Grupo Luz Saúde, sobretudo pelas intervenções de Isabel Galriça Neto, médica e diretora dos cuidados continuados e paliativos naquela instituição, conhecida ainda por ter sido deputada do CDS.