Quando entra no bloco operatório, João Paulo Freitas mantém-se numa espécie de transe. Não sente fome, não vai à casa de banho, aguenta-se dez a 12 horas em pé, em modo concentração total. No final da cirurgia, o cansaço desaba todo de uma vez. “Fico num estado tal que nem sequer consigo conduzir.” Aos 47 anos, o médico, especialista em Ortopedia no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), é um dos poucos em todo o mundo a fazer um procedimento tecnicamente muito desafiante, conhecido no meio médico como horrendoplastia, o que já dá uma pequena ideia do nível de complexidade da intervenção.

Para Hirundino Correia, o horror começou há mais de uma dúzia de anos. Sentiu-o na pele, nos ossos e nos músculos quando a prótese da anca deu origem a uma infeção que não cedia de forma nenhuma. Correu vários médicos, ouviu múltiplas opiniões, mas a solução que lhe apresentavam era sempre a mesma: amputação total da perna, pela zona da anca. Hirundino, engenheiro de profissão, a viver na zona de Lisboa, não se conformou. Foi aguentando as dores horríveis e aprendeu a conviver com as fístulas que iam abrindo ao longo da coxa.

Aos 66 anos, não estava de todo disposto a ficar confinado a uma cadeira de rodas, mas também não se conformava com aquela vida de sofrimento. Continuou a procurar uma alternativa e encontrou-a no Serviço de Ortopedia do CHUC, com grande experiência no tratamento de casos de cancro ósseo e de neoplasias músculo esqueléticas. O que João Paulo Freitas fez a partir daí foi adaptar a técnica ao tratamento destas situações de infeção resistente. Tal como acontece nos casos de patologias tumorais, também aqui ocorrem grandes perdas ósseas e de tecidos, causadas pela atividade das bactérias que se alojam à volta da prótese. Quando chegam a Coimbra, os doentes levam já muito sofrimento acumulado, atravessam, em regra, situações familiares e profissionais delicadas e estão desesperados por encontrar um tratamento que não passe pela amputação. “As pessoas chegam a dizer-nos: ‘Prefiro morrer do que ser amputado’”, conta o diretor do Serviço de Ortopedia, Fernando Fonseca.
Blandina Tavares, 49 anos, sentia-se em “morte lenta”. Aos 19 anos, tivera um acidente que obrigou à colocação de uma prótese. Vinte e cinco anos depois, atingido o tempo de vida útil do aparelho, começaram os problemas. Feridas pela perna acima, buracos por onde purgava continuamente, grandes limitações de movimento… Mesmo assim nunca deixou o trabalho na cozinha nem de cuidar dos dois filhos pequenos. Fazia três a quatro pensos por dia, usava calças e camisolas compridas para disfarçar e calava a dor. “Não queria amputar, por isso aguentava. Estava disposta a lutar pela minha perna.” A luta levou-a a vários especialistas, “no público e no privado” e a diversas cirurgias de limpeza dos tecidos infetados, anos de toma de antibióticos e medicamentos para a dor, sem que nada a livrasse do tormento. Até que chegou às mãos certas. “Nem olhei para trás”, confessa, emocionada.
Ao decidir submeter-se à operação, o doente tem de saber ao que vai. “Preparo-os para o que vão passar. É preciso que haja coragem, de parte a parte”, nota o ortopedista. Duas cirurgias longas – uma delas para debelar a infeção e outra para colocar a nova prótese – e um período de recuperação que pode ser prolongado e desafiante, quer a nível físico quer a nível psicológico. Na primeira intervenção, é preciso eliminar a prótese que está na origem dos problemas, retirar o osso infetado e que já não poderá recuperar bem, assim como os tecidos moles sem vida, lavar com produto desinfetante toda a área e reconstruir a articulação da anca com um espaçador temporário, impregnado de antibiótico. Nos dois meses seguintes, o doente permanece internado, a fazer antibiótico endovenoso. No regresso ao bloco, é colocada a nova prótese, feita numa liga de titânio e revestida a prata, para reduzir o risco de infeção.
Recorde mundial
Em todo o mundo, há muito poucas unidades de saúde a conseguirem fazer esta cirurgia altamente complexa, dita de “salvamento de membros”. Em Portugal, João Paulo Freitas é o único médico capaz de a encarar, estando neste momento a trabalhar na tese de doutoramento sobre o tema. Desde que começou, em 2016, já tratou 20 doentes, vindos de todo o País, incluindo as regiões autónomas dos Açores e da Madeira. Há jovens na casa dos 20 e pessoas com mais de 70 anos.
Hirundino Correia representa um recorde mundial pela extensão da área reconstruída: metade direita da pélvis, mais fémur total do mesmo lado (como se pode perceber claramente na imagem de Raio-x publicada nestas páginas). “Recentemente, participei num congresso mundial da área e não havia caso nenhum com uma extensão tão grande”, nota João Paulo Freitas. O caso é tão complexo que exigiu a produção de uma prótese à medida, numa colaboração entre a equipa médica e os engenheiros. “Demoro meses a preparar uma cirurgia destas. Quando chego ao bloco, já sei exatamente o que tenho de fazer, onde começar a incisão”, explica o ortopedista.
“Foi graças à nossa experiência e ao nosso conhecimento no tratamento de tumores que começámos a perceber que podíamos oferecer alternativas a estes doentes que sofrem de complicações extremas associadas a próteses e que implicam amputação”, avança Fernando Fonseca. “Não aconteceu de um dia para o outro”, continua o responsável, que admite já ter lista de espera. “As pessoas têm direito a uma resposta, mas a realidade é que, pela complexidade dos casos, só temos capacidade no serviço para tratar um doente de cada vez”, admite.
Para João Paulo Freitas, a história começou quando estava em início de carreira e se viu obrigado a amputar uma perna a uma mulher jovem. Apesar de ser o procedimento recomendado, o médico nunca ficou em paz. “Não foi para isso que estudei”, desabafa. E não descansou enquanto não arranjou maneira de oferecer um destino diferente a estes doentes. Até o equipamento cirúrgico teve de ser adaptado à questão das multirresistências, obrigando a cuidados extra no controlo da infeção. Isso passa pela utilização de uns fatos especiais, ventilados e completamente herméticos, que lembram o equipamento de um astronauta, luvas mais grossas e mil olhos contra os inimigos invisíveis que contaminam os tecidos dos doentes. “A primeira vez que vi fatos destes foi na Mayo Clinic, nos Estados Unidos da América”, nota o médico.
Sem nunca ter alta
Nos corredores do hospital, Hirundino vai caminhando em passos lentos, mas determinados. Apoia-se numas canadianas e na perna doente leva uma ortótese para ajudar à consolidação dos tecidos. Não esqueceu as tormentas por que passou. Antes e depois da cirurgia. E as sequelas da infeção ficarão para sempre: perdeu sete centímetros de comprimento na perna direita por causa do desgaste ósseo. Mas agora só lhe interessa olhar para o futuro. “Ainda não me atrevi a conduzir. Provavelmente irei adquirir um carro adaptado, para poupar a prótese”, avança. Todos estes doentes manterão uma ligação ao CHUC para o resto da vida. São necessárias consultas e análises de rotina, para garantir que os microrganismos estão controlados e não há atividade das bactérias. “Nunca terão alta da nossa consulta”, sublinha João Paulo Freitas.
“O doente tem de saber ao que vai. É preciso coragem, de parte a parte” João Paulo Freitas, ortopedista
Com o envelhecimento da população, a tendência é para aumentar a necessidade de aplicação de próteses para tratar o problema das artroses, causadas pelo desgaste. Há componentes de ordem genética, ambiental (que está relacionada com a atividade física e profissional) e social que condicionam o aparecimento desta patologia. “Há novos problemas que representam novos desafios”, realça Fernando Fonseca.
Reformada por invalidez, Blandina sente que ganhou uma nova vida depois da colocação da prótese total da anca direita e de dois terços do fémur. “Nunca mais tive dores”, diz, aliviada.
Vitorino Paulo, de 59 anos, continuará a ir do Alentejo, onde vive, até Coimbra, de quatro em quatro meses, com a sensação de que ganhou a lotaria. “Tive azares na vida, mas considero-me uma pessoa de sorte por me ter cruzado com o doutor Freitas”, confessa. Há 14 anos, teve um tumor ósseo como consequência de um linfoma, o que obrigou à colocação de uma prótese. Acabou por desenvolver uma infeção complicada e teimosa. “Andei três anos com líquido a sair da perna, com fístulas, um mal-estar terrível. Não conseguia sentar-me e até um simples toque me causava dor”, recorda.
“Há doentes que chegam a pensar em suicídio”, relata João Paulo Freitas. Está visto que a horrendoplastia salva mais do que a perna.