O que significa falar de poluição sonora quando ela não se vê? Grande invasor para uns e prazer sem culpa para outros, o ruído ataca em várias frentes e impacta negativamente no corpo e no comportamento, ao ponto de haver quem fale, no meio científico, de estarmos perante a próxima grande crise de saúde pública.
Comecemos pelo prazer sem culpa: por dia, segundo a consultora Nielsen, os norte-americanos passam cerca de quatro horas e meia a ouvir música, bem mais do que os 60 minutos limite recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Entre os mais novos, também apelidados de geração silenciosa, ninguém dispensa o telemóvel e acessórios, de auriculares e auscultadores a colunas de som portáteis. A OMS estima que, entre os 12 e os 35 anos, o número de pessoas em risco de perder a audição por volta da meia-idade devido ao uso não seguro de aparelhos de som para uso pessoal ultrapasse os mil milhões. Nada de errado com ouvir música; o problema está na relação entre o volume e a duração. Considerando o limiar de segurança entre os 75 e os 85 decibéis (dB), estar num bar, numa discoteca ou num concerto, imerso em 100 decibéis (dB) durante mais de 15 minutos (ou, se forem 85 dB, durante oito horas seguidas) é um risco sério para a acuidade auditiva. A exposição a sons altos por longos períodos de tempo agride as células sensoriais do ouvido e resulta em perdas funcionais temporárias ou em surdez, o que justifica a campanha Make Listening Safe (tornar a audição segura) e o Dia Mundial da Audição, a 3 de março.
A vibração sonora produzida pelo trânsito, na hora de dormir, afeta o corpo mesmo que a mente desligue
Segundo dados do Instituto Nacional de Saúde e Nutrição norte-americano, a prevalência de perda auditiva por abuso do nível sonoro dos auscultadores em jovens, nas últimas duas décadas, aumentou 31 por cento. Em Portugal, um estudo recente da Deco veio mostrar que o problema também existe, especialmente quando se associa a outros tipos de ruído. Após medir o tempo de exposição e a pressão sonora a que estavam sujeitos três adolescentes em diferentes contextos (sala silenciosa, rua e metro) e com o mesmo equipamento e software, o caso de maior risco foi o do jovem que tinha o volume de som mais alto nos auscultadores durante mais tempo do que o recomendável e andava de metro (intensidade média de 94 dB durante uma hora diária).
Se às escolhas de cada um adicionarmos outras fontes de ruído que não temos possibilidade de controlar ou de regular diretamente, chegamos à crise de saúde pública mencionada em publicações de referência como The New Yorker e The Atlantic: a vibração sonora produzida por gente que se diverte lá fora e pelo trânsito, na hora de dormir, afeta o corpo mesmo que a mente desligue, do mesmo modo que o facto de estar habituado a viver junto a uma ferrovia ou a um aeroporto não elimina o stresse ambiental de que fica refém. Até que ponto somos capazes de nos adaptar ao ruído crescente sem prejuízo para a saúde?
Viver com o inimigo
Os dados da OMS e da Agência Europeia do Ambiente mostram que, “a seguir à poluição do ar, a sonora é a que tem mais impacto na saúde e na vida das pessoas [ver Ruído e saúde], mas é negligenciada pelos decisores”, lamenta Francisco Ferreira, presidente da Zero – Associação Sistema Terrestre Sustentável. O ambientalista refere o ruído da vizinhança como “o mais complicado, por ser uma fonte de conflitos e levar muitos a desistirem e a mudarem de casa”. Podem ser os residentes que fazem festas regulares e usam equipamentos pessoais ruidosos sem pruridos a qualquer hora da noite (máquinas de lavar, aspiradores, instrumentos musicais) ou os frequentadores de um bar concentrados na rua, com ou sem veículos motorizados. Pode ser ainda o estabelecimento comercial com as máquinas a funcionarem sem respeitar a acústica dos edifícios. Quando se assiste à “ausência de sensibilidade das autoridades policiais e à falta de rigor na aplicação de coimas”, a solução passa por minimizar danos a título individual, seja com dispositivos e ruído branco – sinal sonoro com frequências na mesma potência que atenua sons ambientes mais intensos – ou auscultadores. Porém, comenta Francisco Ferreira, “isto só revela que cada vez temos menos direito ao silêncio”. De resto, acrescenta, “andar com protetores isola-nos cada vez mais dos outros e não é com ruído que se combate o ruído”.
No entanto, é o que tem acontecido nos últimos anos, com a corrida aos auscultadores e auriculares que permitem o cancelamento ativo de ruído e as principais marcas hi-tech a disputarem o mercado de consumidores. Segundo a plataforma Kuantokusta, registou-se um aumento de 345% nas pesquisas online de modelos com a função “noise canceling” entre setembro e dezembro de 2019 em relação ao período homólogo de 2018. Embora mais dispendiosa, esta tecnologia permite captar o som exterior e gerar uma onda sonora invertida que anula o ruído ambiente, ficando apenas o som que o utilizador está a ouvir, sendo possível anular cerca de 20 decibéis num ambiente sonoro uniforme (viagens de comboio, autocarro ou avião), mas funciona menos bem para bloquear a voz humana (pessoas na rua, num cowork ou em open space).
Os geradores de ruído branco (o site myNoise, por exemplo, tem mais de 15 mil ouvintes), utilizados para diminuir o incómodo causado pelos zumbidos, estão a tornar-se populares por também mascararem o ruído em espaços de trabalho partilhados e para facilitarem o sono. Neste cenário, ecologistas acústicos, como Gordon Hempton, admitem que o silêncio está em vias de extinção a uma velocidade superior à das espécies.
Perceção de controlo conta
Os efeitos do ruído na saúde começaram a ser levados a sério pela ciência nos anos 1960. Se o som podia ter benefícios no plano fisiológico e emocional, tinha também o potencial de ser usado como arma de manipulação e tortura – especialmente as baixas frequências, capazes de provocar vómitos, desorientação, espasmos e diarreia. Hoje, os estudos epidemiológicos europeus permitem estimar que a exposição prolongada ao ruído é a causa de, anualmente, poderem vir a existir 22 milhões de pessoas afetadas por incomodidade crónica, seis milhões e meio com perturbações de sono e novos 48 mil casos de doenças cardíacas, além das cerca de 12 500 crianças que virão a sofrer de dificuldades de aprendizagem na escola por causa do tráfego aéreo.
Nós, humanos, temos sérias dificuldades em adaptar-nos ao stresse ambiental. “Muitos dos pacientes que nos procuram com perturbações de ansiedade e de sono trabalhavam por turnos ou moravam em locais com ruído ambiental considerável”, afirma o neuropsicólogo e investigador Jorge Alves, que menciona ainda “o risco de declínio cognitivo através de efeitos negativos na saúde vascular cerebral e com potencial para contribuir para o desenvolvimento de demência”. Contudo, há um fator que faz a diferença na maneira de gerir o stresse ambiental, com implicações na saúde, ou na falta dela. “Se é o próprio a fazer barulho, acha que o controla e não se sente lesado; se for sujeito a ele, já tem a perceção de que não consegue combatê-lo”, esclarece José Palma-Oliveira, psicólogo ambiental e perito da Comissão Europeia para a Diretiva do Ruído. Ou seja, “quando o ruído não é produzido pelos próprios e as pessoas estão privadas de o controlar”, os danos para a saúde são certos, “independentemente de variáveis como a cultura ou a nacionalidade”, assegura o especialista, que se baseia nas estimativas feitas com dados da Europa Ocidental: mais de um milhão de anos perdidos (mortes e anos de vida saudável) à conta da poluição sonora, esse “veneno mortal”. Trata-se de um custo demasiado elevado para permanecer ignorado e sem políticas de redução de ruído à altura.
Usadas como arma de tortura, as baixas frequências podem provocar vómitos, desorientação, espasmos e diarreia
Segundo um velho ditado, temos uma boca para falar e dois ouvidos para ouvir. Num ambiente saturado de estímulos, a dureza de ouvido é talvez a resposta mais adaptativa a uma exposição prolongada, seja desejada, como sucede com os “viciados” em música em volumes proibitivos, ou indesejada, que toca a muitos, bem mais do que o admissível. Entretanto, países como a Dinamarca têm vindo a apostar fortemente no controlo do ruído da ferrovia com barreiras acústicas e adotando medidas de insonorização das habitações nas proximidades. Circular nas composições da Rail Net Denmark e encontrar zonas livres de ruído e interdição do uso de equipamentos de som parece ser o novo normal.
Embora não estejamos na Dinamarca, há trabalhos a assinalar no campo da investigação. Realizado pela Escola de Saúde do Instituto Politécnico do Porto em três unidades neonatais, um estudo contemplou a medição dos níveis de pressão sonora e inquiriu o pessoal que trabalhava nas unidades. Apurou-se que 41% dos profissionais consideram esses níveis “ligeiramente desconfortáveis” e 48%, “aceitáveis”. Mais de metade da amostra (55%) atribuiu o incómodo aos equipamentos. Nas medições efetuadas, detetou-se ruído excessivo em todas as unidades, superior às recomendações internacionais, com níveis entre os 48,74 os 71,7 decibéis. Podemos habituar-nos a tudo desde que nascemos, mas o impacto desse “tudo” vai acompanhar-nos ao longo da vida. Fica a pergunta para decisores e cidadãos: é de fazer uma dieta sonora, limitar a ingestão diária de ruído, qual refeição processada que se come com prazer e sem culpa, uma vez por festa?
O que diz a Lei
Horas “sagradas”: entre as 23h e as 7h, é proibido ouvir música alta e usar equipamentos ruidosos (martelar, usar o berbequim, aspirar a casa, etc.).
Obras e remodelações: Ruído permitido entre as 8h e as 20h nos dias úteis e interdito fora dessas horas e nos feriados e fins de semana (implica ainda afixar aviso no prédio aos condóminos com a duração prevista das obras)
Eventos de rua: Requerem licença especial emitida pela autarquia
Como atuar: Chamar a atenção do infrator e depois a polícia. Pode também recorrer aos Julgados de Paz e aos tribunais e, em casos específicos, pedir indemnização por danos, mediante prova (medições, relatório médico, etc.)
Fonte: Regulamento Geral do Ruído (2007)