Aos 44 anos, Jean Wyllys é dos poucos brasileiros que pode vangloriar-se de já ter recebido praticamente os mesmos votos do atual presidente do país, Jair Bolsonaro. Os seus 50 milhões de votos populares não o conduziram ao Palácio do Planalto, em Brasília, mas valeram-lhe a vitória no reality-show Big Brother Brasil, em 2005. Seria o seu primeiro “ato político” de âmbito nacional, como explica nesta entrevista à VISÃO.
O deputado federal brasileiro, assumidamente homossexual, eleito para um terceiro mandato pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), desistiu do cargo devido às constantes ameaças de morte e às mirabolantes campanhas de difamação de que era alvo. O assassínio de Marielle Franco, sua amiga e camarada de partido, precipitou a decisão de se autoexilar. Escolheu viver em Berlim. Planeia fazer um doutoramento e, atualmente, está a acabar de escrever um livro.
Jean Wyllys está em Portugal a convite do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra. Hoje, 27 de fevereiro, dará uma conferência na Casa do Alentejo, em Lisboa, sobre os motivos do seu exílio. Ontem, fez uma palestra em Coimbra e, à noite, apresentou o livro A Noite da Espera (Companhia das Letras), do escritor brasileiro Milton Hatoum, na Fundação José Saramago. A leitura do Nobel português fez-lhe nascer a vontade de conhecer o Alentejo, confessaria já depois do gravador desligado.
Jean Wyllys tem muito para dizer. Quase dispensaria as perguntas. Avisa os portugueses para estarem alerta perante os “brasileiros com inclinação fascista” e acusa a religião de alimentar os preconceitos dos seus compatriotas. Bolsonaro, e os adjetivos com os quais o desclassifica, estão sempre presentes. Foi durante o impeachment da presidente Dilma Rousseff que a relação de ambos se deteriorou irremediavelmente. O deputado do PSOL cuspiu no então futuro presidente, depois de Bolsonaro elogiar um dos mais temidos torturadores do período da ditadura militar. À VISÃO, contou o que o fez desistir da ideia de viver em Lisboa e não hesitou em deixar uma recomendação ao presidente Marcelo Rebelo de Sousa.
Este Carnaval será muito diferente no Brasil?
Sim, será muito diferente. Em primeiro lugar, eu não estarei lá. [risos] Mas também será diferente porque há uma depressão generalizada no país e, em função disso, o Carnaval será muito político. Haverá muitos protestos e críticas ao novo presidente da República e à sua trupe. O Carnaval sempre cumpriu uma função de resistência. Primeiro de resistência dos corpos, sempre foi o momento em que os homens se travestem de mulheres e realizam desejos que, durante o ano, não são permitidos. Apesar de vivermos numa cultura muito machista, também as mulheres têm mais liberdade nesta altura do ano. Nesse sentido, o Carnaval sempre foi um espaço de resistência política.
Dois meses depois de ter abandonado o Brasil continua a sentir a sua vida em risco?
Apesar de ainda não ter assentado completamente – ainda não tenho um apartamento para viver – sinto-me mais livre e mais seguro. Consigo fazer coisas que não fazia no Brasil há meses, como ir a um restaurante, tomar uma bebida sozinho ou perder-me na multidão e não ser reconhecido. Viver num lugar como Berlim tem essa vantagem. Há brasileiros em Berlim, mas eles estão diluídos entre outras pessoas de várias partes do mundo que não me conhecem. É óbvio que continuo a tomar cuidados, não tanto como tomava no Brasil, mas continuo atento. A gente sabe que hoje as coisas podem acontecer em qualquer lugar. Estou muito mais feliz, no sentido de estar livre e seguro, mas também estou triste por estar longe dos meus amigos e da minha família. Até das minhas coisas, dos meus livros, que eram como se fossem meus filhos, tenho saudades.
O que se tornou mais difícil de suportar no seu “cárcere privado”, como chamou ao período em que passou a ser acompanhado por escolta policial?
Não frequentar os espaços. O Rio não é uma cidade maravilhosa, mas é um maravilhoso cenário para uma cidade, como dizia a [escritora] Elizabeth Bishop. Eu nasci em Alagoinhas, fiz a minha graduação e o meu mestrado em Salvador, e depois escolhi o Rio de Janeiro para viver. De repente, essa cidade converteu-se num espaço insuportável para mim. De violência e de insulto. Eu via a praia da varanda do meu apartamento, mas não podia ir à praia. Andar na rua com as pessoas a insultarem-nos e ser obrigado a sair com segurança para não nos agredirem fisicamente, por conta de mentiras, é insuportável demais. Nunca consegui ser ateu… Apesar de ter estudado o marxismo e o materialismo histórico, nunca consegui ser ateu. Deus, não no sentido judaico-cristão, mas no sentido de uma força superior, sempre foi insuperável para mim. Sempre recebi as pessoas com um sorriso, mesmo quem eu não conheço, quando andava na rua batia papo com todo o mundo e, de repente, isso foi desaparecendo da minha vida. Eu sorria e as pessoas devolviam-me insultos. Não foram só as ameaças de morte, mas também essa deterioração da relação com as pessoas, porque elas acreditavam nas mentiras que recebiam pelas redes sociais… Foi demais. Eu até gosto de ficar em casa, mas uma coisa é gostar de ficar em casa sabendo que se pode sair, e eu não podia mais sair. Entrava e saía de um carro blindado. Não era vida.
Hoje, já conhece a origem das ameaças de que foi alvo?
Não. Nunca foi feita uma investigação, apesar das inúmeras denúncias que fiz à polícia federal. Nunca investigaram de onde vinham essas ameaças ou quem financiava as campanhas difamatórias contra mim – e uma coisa não está dissociada da outra. Mesmo quando a Comissão Interamericana de Direitos Humanos entrou com um pedido de medidas cautelares, porque avaliou todas as provas e reconheceu que eu corria grave risco de vida, juntamente com a minha família, não houve uma investigação. Não era só uma ameaça de morte que vinha pela rede social, eram emails com imagens da minha casa, da casa da minha mãe, com os endereços pessoais dos meus irmãos, que não são figuras públicas… Como é que essas pessoas conseguiram essas informações? E como é que a polícia não dá uma resposta a isso? Essa negligência do Estado, o desgaste do tecido social por meio da violência política que se agravou no Brasil a partir do impeachment da Dilma e o assassinato de Marielle Franco, levaram-me a concluir que o Brasil não era mais seguro para mim.
Sentiu que não seria possível cumprir o mandato para o qual tinha sido eleito?
Não seria possível desenvolver o terceiro mandato como desenvolvi os dois anteriores. O segundo já foi um mandato difícil, sobretudo a partir do impeachment. Mais do que assumir a defesa do Governo de Dilma, eu assumi a defesa da democracia, porque um presidente eleito só pode ser retirado do cargo com novas eleições. E o impeachment contra Dilma foi fraudulento, conduzido por um sujeito que, agora, está na prisão. Esse tecido que se esgaçou devido à violência política mostrou-me que eu não ia conseguir levar esse mandato adiante. Eu morreria ou definharia porque não ia resistir a esse volume de mentiras e de ataques verbais e físicos.
A morte de Marielle Franco contribuiu para essa decisão?
Receber a notícia de que a família Bolsonaro tem ligações às organizações criminosas que controlam territórios no Rio de Janeiro, e que o principal acusado pela polícia civil do Rio de ter disparado contra a Marielle Franco teve sua esposa e sua mãe empregadas no gabinete de Flávio Bolsonaro, o filho do presidente eleito senador pelo Rio de Janeiro… Essa família que agora controla as instituições tem-me como inimigo. Mais do que adversário eles me consideram inimigo. Tudo isso fez-me decidir ficar na Europa.
Atualmente reside em Berlim. Chegou a ponderar viver em Portugal?
Sim, cheguei. Eu gosto muito de Portugal e, como diria Fernando Pessoa, a língua portuguesa é a minha pátria. Mas acho que em Portugal eu não teria a vida tranquila que preciso de ter. Muitos dos brasileiros que emigraram para cá foram, justamente, aqueles que apoiaram o impeachment de Dilma e que votaram nesse governo que está aí. São brasileiros com inclinação fascista. E, se eu morasse em Lisboa, acho que teria alguns constrangimentos por causa disso.
Surpreende-o que a maioria dos brasileiros imigrados em Portugal tenham votado em Bolsonaro?
É uma atitude incoerente e hipócrita. Eles vieram para um país governado por socialistas, de construção do bem-estar social, de políticas progressistas – a política de drogas em Portugal é uma das melhores do mundo – mas no Brasil condenavam um governo que estava construindo um estado de bem-estar social. Você não pode gozar de benefícios sociais num país e condenar benefícios sociais no seu país de origem. Isso é má-fé, burrice ou uma tentativa de vir para cá conspirar contra o governo português de esquerda? Estas são perguntas que têm de ser feitas. Eu já disse para os portugueses ficarem alerta porque essa é uma gente a que temos de estar atentos.
Desconfia das suas intenções?
É óbvio que essas pessoas não são burras, elas viram que esse sujeito não apresentou um programa de governo e que não participou em nenhum debate, apenas proferiu discursos de ódio e espalhou mentiras pelas redes sociais. O que dizem agora aqueles que votaram nele por ele ser supostamente honesto, diante do envolvimento da família Bolsonaro em corrupção, por exemplo através do desvio de recursos do fundo eleitoral pelo partido? O que as pessoas têm a dizer da ministra dos Direitos Humanos, da Mulher e da Família, que é uma mentirosa compulsiva? E do ministro das Relações Exteriores que acredita que a Terra é plana e que considera o movimento LGBT fruto de uma conspiração internacional marxista para evitar o regresso do menino Jesus? A gente está vivendo uma distopia. Essas pessoas que votaram nele com tanta convicção, que vieram para cá e tiveram privilégios, não são burras, mas elas têm má-fé. Elas não querem ver os pobres bem. Querem sempre a distinção entre pobres e ricos, querem ver os pobres alijados de direitos para se sentirem melhor.
A sociedade brasileira é profundamente classista?
A inclusão que o governo Lula produziu, através de políticas sociais de distribuição de rendimento e de criação de emprego, permitiu que os mais pobres pudessem viver melhor. A classe média incomodava-se quando via essas pessoas nos mesmos lugares que ela. A classe média incomodava-se de o porteiro lhe dizer que o filho tinha passado em Direito na faculdade. É uma visão muito classista, sim. Essas pessoas sentiam-se ameaçadas. Era essa mobilidade social que a classe média não queria.
Diz não acreditar em soluções jurídicas para combater a misoginia, a homofobia ou o racismo. Qual é, então, a solução?
Não é que não acredite, mas não acho que sejam suficientes soluções jurídicas. A criminalização é, de todas as medidas, a menos produtiva para combater essas questões culturais que estão profundamente arreigadas. O Direito Penal é uma saída conservadora, responde à sanha vingativa mas não desconstrói culturalmente. No ano passado, o Brasil foi campeão do feminicídio e nós temos uma lei penal dura. A lei que converteu o racismo em crime hediondo e imprescritível não resolveu o problema do racismo no Brasil, ninguém foi preso desde que essa lei foi instituída… É sempre mais fácil as pessoas aceitarem soluções penais. Essas soluções aplacam o desejo de vingança mas não resolvem as questões. É como ter um incêndio e jogar água nas labaredas sem procurar o foco do incêndio.
A solução é a educação?
A solução é pensar políticas de educação para a inclusão e para a diversidade. Se você perguntar a dez brasileiros meramente informados qual é a saída para o Brasil, onze vão responder que é a educação. Mas quando a gente senta para discutir que plano de educação é que vai salvar o país, quantos recursos vamos colocar na educação, que currículo vamos montar, como serão as escolas em termos arquitetónicos… Aí começam os problemas. Todas as escolas públicas onde eu estudei no Brasil, e eu estudei em escolas públicas, parecem prisões. A maioria delas não tem biblioteca nem se converteram em pontos de cultura que incluíssem a comunidade; na maioria delas, o bullying contra as crianças negras de cabelo crespo, contra crianças gays e lésbicas nunca foi combatido, pelo contrário, até era reforçado pelos professores… Então, quando a gente apresenta um plano concreto que vai converter a educação numa saída, aí as pessoas não querem essa saída.
As mulheres brasileiras estão especialmente desprotegidas? Correm o risco de perderem direitos perante a atual onda conservadora?
Seguramente que as mulheres brasileiras estão desprotegidas. Elas são as protagonistas da resistência e, ao mesmo tempo, elas correm o risco de perderem direitos conquistados. A maioria dos deputados eleitos são contrários à conquista de direitos plenos pelas mulheres, sobretudo direitos sexuais e reprodutivos, principalmente o direito à interrupção segura da gravidez indesejada. Junto com as mulheres, com essa reivindicação pelos direitos sexuais, o outro inimigo é a comunidade LGBT. O movimento gay não existiria sem o movimento feminista e todo o questionamento que as mulheres colocaram nessa ordem da dominação masculina.
O Brasil é o país onde são praticados mais homicídios contra pessoas LGBT. O que continua a alimentar a homofobia dos brasileiros?
A homofobia institucional e a homofobia social continuam a não ser desconstruídas. Pelo contrário, são reproduzidas por lideranças religiosas e por figuras políticas. Hoje, temos na presidência da República um homofóbico confesso, que disse muitas vezes, em programas de grande audiência, que odeia gays. Disse num programa de TV que preferia que um filho nascesse morto a ser gay. Esse sujeito insultava-me nas comissões do parlamento e sabe qual era a reação das pessoas? Elas riam. Essas pessoas vivem, todos nós vivemos, numa cultura em que os homossexuais servem ao riso, à humilhação. Essas pessoas cresceram, no máximo, vendo os gays em salões de beleza esticando o cabelo de mulher branca no fim-de-semana. Pera elas, é esse o lugar de um homossexual. Se um homossexual ousar sair desse lugar, assumir um cargo eletivo,ser uma autoridade respeitada da República, aí virou um problema, alguém a ser destruído. Daí a campanha difamatória contra mim.
O Jean Wyllys desafiava essa representação dos homossexuais?
Eu contrariava uma série de afirmações de instituições como a Igreja e desafiava a homofobia social que procura colocar gays e lésbicas num local subalterno e desprestigiado. Quando o pai dizia ao filho de 16 anos que o facto de ele ser gay o iria levar ao fracasso, o filho dizia: “não, olha ali o deputado a dizer que é gay com orgulho”. Isso tornava-se um problema para essa homofobia social e institucional, daí o ódio tão grande por mim. Por isso é que as campanhas difamatórias tiveram tanto resultado, mesmo intuindo que era mentira aquilo que recebiam, as pessoas passavam adiante porque, de alguma maneira, odiavam-me porque eu estava cumprindo esse papel de dar estima social à homossexualidade, algo que elas cresceram pensando que era ruim.
Considera a religião a grande responsável por esses preconceitos?
Em grande medida, sim. A religião católica, a princípio, que foi durante muito tempo a religião oficial e, depois, as religiões neopentecostais. São ambas religiões cristãs, embora muita gente que fale em nome delas seja pouco cristã. Eu tenho formação católica, fiz parte de um movimento progressista, baseado na teologia da libertação, ou seja, há católicos que têm outra relação com a sua religiosidade, diferente da dos católicos da direita conservadora. O mesmo acontece com os evangélicos. Mas essas pessoas mais progressistas estão em minoria e calam-se. Quem acaba falando em público, quem acaba proferindo os discursos de ódio, são esses que odeiam os homossexuais e usam a Bíblia para isso. Essas figuras que falam hoje em nome de Cristo têm muito pouco de cristãs. A mensagem de Jesus e do evangelho é uma mensagem poderosa de inclusão. Se Jesus vivesse hoje, ele estaria com as minorias todas: étnicas, religiosas, sexuais. As pessoas que falam em nome dele parece que não entenderam nada da lição dele. E vêm utilizando dois mil anos de tradição cristã para justificar uma série de ódios contra minorias sexuais, étnicas e religiosas, lamentavelmente. Esses valores também são reproduzidos por outras instituições, como a família. A família também pode ser um ambiente de reprodução de preconceitos, e a escola, porque a escola não se transformou. Muitos professores reproduzem esses preconceitos.
No início deste ano, a Human Rights Watch voltou a censurar o Brasil devido à violência policial. Qual o perfil dos brasileiros que vivem com medo da polícia?
São os negros e os pobres. Os pobres de uma maneira geral e, particularmente, os pobres negros. Um adolescente negro, pobre, quando sai de casa não sabe se volta. Isso é uma tragédia. As mães dos adolescentes negros e das crianças negras têm de lhes dizer coisas como: “meu filho, se for abordado não responda; não saia sem documentos; por favor, avise que está a tirar os documentos do bolso; baixe a cabeça…” A mãe pede ao filho que se submeta a uma humilhação para que ele volte vivo. A polícia do Rio de Janeiro executou onze garotos de uma vez dentro de um carro. E nenhum dos meninos era bandido. Eles tinham saído para curtir o fim-de-semana no carro de um deles. A polícia cercou o carro e, sem perguntar, fuzilou onze pessoas. Esse é o perfil.
Há muita violência com motivação racista no país?
Há um racismo estrutural no Brasil, uma herança maldita dos 300 anos de escravidão que a gente não conseguiu enfrentar, e que essa turma que se elegeu não vai enfrentar. Muito pelo contrário, vai reforçar. Diante das estatísticas alarmantes – só a polícia de São Paulo matou mais de 200 pessoas no ano passado – o ministro da Justiça devia pensar numa revisão dessas forças do Estado que se têm voltado contra a sua própria população. Um ministro da Justiça de verdade estaria preocupado com isso, em vez de apresentar um pacote anticrime que legitima a morte. Sérgio Moro admite que um policial que mate por susto ou forte pressão seja absolvido. É óbvio que o preço da vida das pessoas caiu drasticamente. Os policiais vão matar qualquer um e vão alegar que estavam sob forte pressão ou que foram atacados. Eu não sei se é incompetência de Moro ou se é cinismo. Esse canalha é branco, teve todas as oportunidades da vida, pode estudar fora, goza de um prestígio e de um salário absurdo, talvez seja por preconceito de classe que ele não se importe com a vida de quem está morrendo nas favelas… O Brasil tirou a humanidade de uma parcela da sua população. Para a classe média, de facto, não há humanidade nos pobres. Por isso é que ela defende tanto estas políticas repressivas e duras contra os mais pobres.
Choca-o que o Presidente da República português tenha dito que a reunião com Bolsonaro foi “um encontro de irmãos”?
Choca-me. Quais foram os pontos dessa identificação? Bolsonaro é um incompetente, racista, misógino, homofóbico… Acho que o presidente de Portugal quis ser cortês e, ao querer ser simpático, sem tomar uma posição, acabou dizendo uma frase infeliz. Eu não conheço o presidente de Portugal pessoalmente, mas parece-me que ele está muito longe de ser como Bolsonaro. Se eu fosse ele, na primeira oportunidade, revia essa frase. Ele até pode dizer que respeita a soberania de outro país, e que se a maioria dos votantes escolheu Bolsonaro, se vão encontrar. Agora, dizer que foi um encontro de irmãos é um exagero que o compromete.
A sua participação no Big Brother brasileiro, que venceu praticamente com os mesmos votos que elegeram o atual presidente, teve importância política?
Teve muita importância política. Aquela edição do programa – a Globo nunca conseguiu repetir aquele êxito – foi política porque a minha presença na casa politizou o programa. O meu objetivo era académico, eu não aspirava a ser modelo ou ator, como quem habitualmente participa em reality-shows. A minha história de vida, o facto de eu ser gay assumido, de ter colocado isso num programa de televisão, e ainda assim ter virado um fenómeno de audiências e de popularidade, foi muito político. Além disso, nós estávamos vivendo um momento muito importante no Brasil: era a ascensão da era Lula. O Brasil estava vivendo bons ventos económicos, havia muito futuro pela frente e havia esperança. Todos os governos brasileiros saídos das elites políticas não abriram tantas faculdades e institutos federais quanto Lula, um cara que nunca pôs os pés numa faculdade. O Brasil estava em curva ascendente, ou seja, havia um sentimento político que permitiu que eu ganhasse o Big Brother. Hoje isso não aconteceria.
Porquê?
A sociedade foi intoxicada pelo veneno da mentira que acordou os monstros adormecidos pelo bem-estar económico. Quando a economia vai bem e há empregos, quando há a garantia de futuro, certos preconceitos vão ficando de lado, mas quando a economia se deteriora e as pessoas vão perdendo a perspetiva de futuro e a segurança, elas precisam de culpados. A direita sabe muito bem manipular o medo das pessoas e dirigi-lo para determinados grupos. Hoje, os culpados são a comunidade LGBT, as feministas e os imigrantes… Atribuem culpa a essas pessoas por problemas que elas não criaram. Os problemas económicos que vivemos são resultado de políticas capitalistas desastrosas, da concentração de rendimentos na mão de poucos e de um mercado que não respeita os mais vulneráveis. Se o mercado for livre, se tudo virar uma commodity [mercadoria], quem não tiver dinheiro para consumir vira um pária, vira um excedente a ser eliminado ou encarcerado. É inadmissível que as pessoas achem justo a concentração da riqueza do mundo na mão de tão pouca gente. Não pode haver justiça assim.
Ainda acredita que será Marielle Franco a derrubar Jair Bolsonaro, mesmo depois de assassinada?
Acredito, sim. A morte de Marielle não significou o fim de Marielle. O corpo dela não era à prova de bala, mas as ideias dela são. E a memória dela também. A relação da família Bolsonaro com as milícias que a mataram serão aprofundadas e quando isso acontecer seguramente ele vai cair. E terá sido ela. Terá sido Marielle Franco a derrubar esse canalha.
Nesse momento regressa ao Brasil?
Nesse momento eu volto. Quando essas forças caírem seguramente eu volto. O Brasil é o meu país e é onde eu quero estar.
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