O próprio pintor José de Guimarães foi enganado. Um apreciador da sua obra bateu-lhe à porta, para obter do artista a autenticação de uma pintura a óleo sobre papel, colada em tela e assinada “José de Guimarães” no canto inferior direito. Pretendia adquiri-la ao antiquário Joaquim Pinto dos Santos, por 10 mil euros, mas só o faria mediante uma certificação do pintor. O comprador levou ao artista uma fotografia da obra, emoldurada e protegida por um vidro. Foi este pormenor, o do vidro, que ludibriou José de Guimarães e o convenceu a escrever na foto: “A obra aqui reproduzida é da minha autoria.” No verso da fotografia, o comprador, pelo seu lado, inscreveu: “Certificado feito pelo artista, perante a obra original, a 3/2/2010.”
O quadro ainda seria vendido pelo primeiro comprador a um segundo adquirente, até que uma queixa-crime de José de Guimarães ao Ministério Público (MP) conduziu à intervenção da PJ e à apreensão da pintura em novembro de 2011. Foi então que o pintor pôde tocar na tela, já sem o vidro, e verificar que o papel usado era “industrial” e não aquele que sempre utiliza, “artesanal”. Indubitavelmente, um “falso”.
No libelo acusatório, integralmente acolhido por um juiz de instrução que o reproduziu no despacho de pronúncia, o MP diz que os antiquários Joaquim Pinto dos Santos, hoje com 48 anos, e Francisco Simões da Cunha, 71 (ambos em liberdade provisória), além dos quadros com assinaturas falsificadas, tinham um certificado original manuscrito por José de Guimarães (outro que não o atrás citado, mas do mesmo género), que digitalizavam e faziam acompanhar de fotografias das pinturas fraudulentas. De acordo com o despacho do MP, os dois arguidos tornaram o “negócio da venda de obras falsificadas” o “seu modo de vida” e, “apenas de 2009 a 2011”, arrecadaram “um valor superior a 170 mil euros”.
Na sala de audiências do Juiz 12 do Juízo Central Criminal de Lisboa, Joaquim Pinto dos Santos e Francisco Simões da Cunha estão agora a responder em julgamento, na soma de ambos, por 14 crimes de burla qualificada, dois dos quais na forma tentada (11 no caso do primeiro antiquário, três no do segundo). Sem cúmulo jurídico, que o coletivo de juízes há de fazer em caso de condenação, os arguidos incorrem em penas até oito anos de cadeia só por cada um dos crimes de burla qualificada consumada, se dados como provados pelo tribunal. E o MP atribui uma mão-cheia de outros ilícitos aos dois antiquários: a Joaquim Pinto dos Santos, 11 crimes de falsificação de documento, 11 crimes de usurpação e 11 crimes de aproveitamento de obra contrafeita ou usurpada. Quanto a Francisco Simões da Cunha, três crimes de falsificação de documento, três crimes de usurpação e três crimes de aproveitamento de obra contrafeita ou usurpada.
O MORTO DO COSTUME
A principal alegação de defesa dos arguidos é a de que compraram as pinturas a um indivíduo do Porto, que lhes fez crer que se tratavam de obras legítimas e originais, o qual veio depois a morrer assassinado. O argumento, porém, sofreu um forte revés na sessão do julgamento realizada na quinta-feira da semana passada, 27 de setembro. Uma filha daquele homem garantiu ao tribunal que nunca viu os quadros em questão na casa familiar nem o pai na posse de tais pinturas. “É um clássico – nestas histórias há sempre um morto”, comenta à VISÃO José de Guimarães, 78 anos.
Este artista plástico, de acordo com o MP, foi o mais prejudicado pela atividade ilícita de que Joaquim Pinto dos Santos e Francisco Simões da Cunha estão acusados. Os dois antiquários, lê-se no libelo acusatório e no despacho de pronúncia do juiz de instrução, venderam oito quadros fraudulentamente atribuídos a José de Guimarães. A alienação de uma nona pintura, uma cópia de um original que se encontra exposto na galeria San Carlo, em Milão, falhou à última da hora. O próprio José de Guimarães soube do “negócio” a tempo de alertar a PJ, que interveio e apreendeu o quadro falso.
Outro falhanço teve a ver com uma pintura fraudulenta atribuída a Júlio Pomar, representando Fernando Pessoa. A venda era para ser feita, por 60 mil euros, a Adílio Soares, um dos donos da galeria lisboeta Valbom. Mas, antes de a comprar, o galerista mostrou a pintura a Pomar (artista plástico falecido em maio passado, aos 92 anos), que foi rápido na resposta: “Falso.”
O arguido Francisco Simões da Cunha, porém, conseguiria o inacreditável com uma pintura a acrílico sobre tela, assinada no canto inferior direito por “Cesariny” (poeta surrealista e pintor que morreu em novembro de 2006, aos 83 anos), representando uma “tentativa de linhas de água, com as cores predominantes – azul, verde, cinzento, roxo e branco”. Por sete mil e quinhentos euros, o quadro foi vendido a um comprador que o considerou uma “pechincha”. Depois, no entanto, o indivíduo começou a alimentar dúvidas sobre a autenticidade da pintura – apesar de já a ter pago.
Francisco Simões da Cunha, relata a acusação do MP, dispôs-se de imediato a desfazer incertezas: com a autorização do comprador, levaria a “obra” à peritagem de um especialista conceituado. Foi uma oportunidade de ouro, segundo o libelo acusatório, de o antiquário dar um destino completamente diferente à pintura. Não a levou a perito nenhum. O que fez foi vendê-la uma segunda vez, por cinco mil e 200 euros, a outro comprador. A suposta pintura de Cesariny seria apreendida pela PJ numa loja de antiguidades na Figueira da Foz. E, no inquérito-crime, o perito Ernesto Martins examinou-a e carimbou-a como “falsa”.
No despacho de acusação, sublinha-se que estes crimes colocam em causa “a segurança e a credibilidade do tráfego jurídico-probatório e comercial” das peças artísticas, para lá dos danos que provocam aos compradores e autores. Mas a endémica lentidão da nossa Justiça impõe-se sempre. Veja-se: neste processo, o despacho do MP foi concluído em janeiro de 2013. E, em 2016, quando o julgamento já ia em duas dezenas de sessões, a juíza-presidente do coletivo, Joana Costa, ascendeu ao Tribunal Constitucional, indicada pelo PS. Resultado: o julgamento voltou à estaca zero, com outros juízes.
Nesta segunda edição, a próxima sessão do julgamento está marcada para 15 de novembro, devendo iniciar-se com a discussão dos pedidos de indemnização cível deduzidos contra os acusados. O pintor José de Guimarães reivindica 200 mil euros – e, em conjunto com o seu advogado, Francisco Teixeira da Mota, alimenta a esperança de que a sentença do processo seja finalmente lida ainda este ano. Ver-se-á.