Aos 41 anos, uma viagem transatlântica custa muito mais do que aos 20. Rodolfo Guzmán que o diga, depois de ter estado pela primeira vez em Portugal, para participar num jantar a oito mãos no restaurante Eleven, inserido na Lisboa Capital Ibero-Americana da Cultura. A entrevista, que estava marcada para um quente final de tarde, no hotel onde se encontrava hospedado, teve de ser adiada porque o chefe chileno precisou de repor o sono, altamente perturbado pelo jet lag. Ainda bem que assim foi, pois no dia seguinte de manhã parecia bem mais fresco para nos explicar a sua cruzada na recuperação da comida tradicional do Chile. Não se estranhe, portanto, que as suas respostas sejam sempre no plural – o seu trabalho no restaurante Boragó, que desde 2016 integra os 50 melhores restaurantes do mundo, segundo uma lista elaborada pelo Diners Club, não seria possível sem as centenas de recoletores que lhe encaminham produtos especiais, de todo o país.
Em Portugal, o que se conhece melhor do Chile são os vinhos. O seu trabalho tem sido no sentido de alargar a imagem do seu país?
Quando começámos, a comida não era algo muito importante no Chile e na cozinha só se usavam ingredientes estrangeiros – os nacionais eram malvistos ou de baixa qualidade. Desde que os espanhóis chegaram ao nosso território, há 500 anos, que os chilenos pretendem ser europeus. Até que, nos anos 90 do século XX, passaram a querer ser americanos. Mas nunca realmente chilenos. Nós baseámo-nos em três coisas fundamentais para transformar isso: descobrir de onde vimos, quem somos e o que temos à nossa volta.
Foi por isso que recuou às raízes, aprendendo com os Mapuche?
Cerca de 80% dos chilenos têm sangue Mapuche, que é o povo mais antigo da América, com uma cultura muito profunda, embora seja desconhecida no Chile. Para mim, os ingredientes usados por eles tornaram-se indispensáveis.
Pensou sempre assim?
Pelo menos há dez anos, desde que abri o Boragó. O percurso não foi fácil, porque naquela época quem ficava de fora das listas recomendadas pela imprensa não existia. Quando falavam de nós, era para se referirem “àqueles que cozinham plantinhas”. Desconheciam que essas “plantinhas” eram o alimento dos Mapuches há mil anos e que são deliciosas. Os chilenos preferiam trufas, presunto de Parma, comida italiana, peruana, esquecendo-se que o Chile é especial, muito diferente do resto da América Latina. Por exemplo, agora mesmo, a 45 minutos da capital, Santiago, está a nevar. O mar é frio todo o ano, como nos países nórdicos, porque o afeta uma corrente vinda da Patagónia. No verão não passa dos dez graus.
Imagino que ninguém tome lá banho…
Tomamos, claro. [Risos.]
Com essa temperatura, o peixe tem de ser bom.
Exatamente. Há bichos de água que só crescem lá.
Mas também têm o deserto de Atacama.
O mais árido do mundo e que também é muito frio, à noite. Toda esta diversidade faz com realmente cresçam coisas únicas, tanto no mar como nos bosques ou na montanha (que pode ir até aos sete mil metros de altitude). Temos mais de 4 200 quilómetros de costa e, por isso, existem cerca de 750 tipos de algas e uma variedade enorme de peixes que nunca tirámos da água para comer. Ficamo-nos por quatro ou cinco espécies.
Também foi buscar aos Mapuche a forma de cozinhar. Que tipo de métodos utiliza?
Os nossos métodos de cozedura são muito rústicos, baseados na madeira e no carvão. O principal ingrediente da cozinha chilena é o fumo, o que requer muita destreza no ofício.
Como definiria a cozinha do seu restaurante?
O Boragó não é um conceito. Não somos vanguarda. Apenas damos continuação a algo, olhando para trás, para seguir em frente. A nossa comida classifica-se como contemporânea, evidentemente, mas só fazemos o mesmo que o povo Mapuche – quando se cozinha, alguém corta. E não há um mais importante do que o outro, fazem parte da mesma cadeia que contribui para o conhecimento do território. Atrás do meu restaurante, há mais de 200 pessoas de comunidades recoletoras e pequenos produtores de todo o Chile.
Como conseguiu reunir essas pessoas?
Viajando por todo o país e criando uma relação com essa gente que, por exemplo, nos apanha uma planta que só cresce três semanas por ano numa montanha na Patagónia. Mas também podem ser frutos silvestres, talos, cogumelos, peixe, marisco…
Como é que esses produtos chegam ao restaurante, na capital do país?
Desenvolvemos uma logística impactante. Num dia, corta-se o produto na Patagónia, na manhã seguinte está à porta do restaurante, numa caixa maravilhosa. Não há intermediários, só trabalhamos diretamente com os produtores.
A montagem deste processo foi fácil?
Ao princípio tivemos de entender esta sazonalidade, porque não havia noção alguma do que se tratava. Fizemos um calendário para catalogar em que zona crescia cada produto, como se cortava, como se cozinhava, quais as diferenças consoante as temporadas, quem o comia.
Esse processo já acabou?
Até ao ano passado, estivemos a organizarmo-nos. Demorou dez anos, mas agora sentimos que estamos a cozinhar. Temos finalmente um feeling completo de todo o país. Saímos, cheiramos e sabemos o que podemos colher a cada dia. Além disso, temos uma horta biodinâmica onde organizamos todos os nossos vegetais e onde ordenhamos as vacas para retirar o leite para o restaurante.
A aceitação dos chilenos não foi imediata, pois não?
Durante os primeiros anos, andei à beira do abismo, com o restaurante vazio, entrei em bancarrota e estive quase a fechar… pelo menos cinco vezes.
Mas tudo mudou quando passou a constar da lista dos 50 melhores restaurantes do mundo.
Sim, em 2013. Num dia tinha cinco pessoas, no outro estava cheio. Depois vieram jornalistas estrangeiros, que escreveram que éramos únicos. Pela primeira vez, há gente de fora que sabe que existe este restaurante e que vai ao Chile só para comer lá. Atualmente, há dois meses de espera por uma mesa.
Só servem jantares de degustação?
Só. Temos dois menus, pois seria impossível mais turnos, com o nível de intensidade com que montámos a nossa operação. A cozinha está divida em três: um grupo sai para recolher os ingredientes, outro, assegurado por 20 cozinheiros, trata do serviço aos clientes, e outro dedica-se ao projeto Conectáz.
Pode explicar em que consiste esse projeto?
São duas cozinhas: uma de teste, por cima do restaurante; e outra que é um laboratório, na Universidade Católica do Chile. Trata-se de uma colaboração antiga com botânicos, biólogos e antropólogos.
O que tem saído dessa colaboração?
Coisas lindas, como por exemplo os vegetais-queijo, que abriram um mundo de possibilidades aos intolerantes à lactose, por exemplo. Há que saber tratá-los de forma a convertê-los em algo que se parece com um queijo, fundido por dentro como um Camembert. E assim se expande o sabor desse vegetal. Vamos abrir outra cozinha-laboratório na Patagónia, na zona mais austral do planeta, porque aí existem ingredientes impactantes, que podem revolucionar a nossa cozinha.
Nessas cozinhas só se faz investigação?
Funcionam como empresas independentes e não trabalhamos apenas para o restaurante. Ainda agora ganhámos um concurso para um projeto de investigação a cinco anos sobre todas as algas do Chile, e também sobre os peixes pequenos, que são de rápida reprodução e baratos. Queremos que as crianças crescem a comê-los porque são muito ricos em Ómega 3.
Tem discípulos dessa forma de olhar a comida endógena do Chile?
Antes éramos só nós a pensar assim. Agora, a nova geração de cozinheiros está a seguir o mesmo caminho de enfoque no produto local, nativo e endémico. Já abrem outros restaurantes que usam os mesmos ingredientes que nós descobrimos, e até os supermercados começam a estar interessados neles. Deu-se uma enorme mudança de mentalidade em relação à comida. Agora respira-se Chile na gastronomia.
Pensa que esse movimento só é possível pela crescente importância dada à comida em todo o mundo?
Absolutamente. E essa importância vai continuar a crescer, porque cada vez há mais gente e temos de pensar como vamos cuidar da natureza. Temos de encontrar outras formas mais lógicas de comer.
Mais naturais?
Sim, que são sempre as mais lógicas e as mais saborosas. Uma maçã ou um vegetal biodinâmico tem muito mais sabor do que aqueles do supermercado.
Sempre pensou assim, por influência de ter crescido numa quinta?
Sempre, porque quando era pequeno, no Chile, toda a comida era biológica.
Este fenómeno generalizado de valorizar o local e o nacional é uma forma de combater a globalização?
Não se trata de um combate, mas apenas de seguir o mais lógico. No entanto, há muitas coisas em relação ao discurso do local com as quais estou em desacordo, porque está baseado apenas num lugar. Não compartilho a ideia de termos de cozinhar com o que está até 50 quilómetros – com as distâncias que existem no Chile, isso não faz sentido. Deixaria de transmitir uma cultura e deixaria de ser chileno para ser apenas regional.
Consegue dizer-me qual é o produto da sua eleição?
Muito dificilmente, porque estamos perante coisas mesmo distintas – os produtos que crescem na terra, no mar, nas rochas e na montanha. Posso no entanto dizer que os frutos silvestres, as algas e os cogumelos são sabores verdadeiramente diferentes dos que existem no resto do mundo.
Que tempero nunca falta na sua cozinha?
O merkén, uma preparação Mapuche que se fermenta e se deixa pendurada por cima de madeira nativa e que depois se bate contra as pedras. Tornou-se superpopular no Chile, não sou só eu a usá-lo.
Ainda não falou de carne. Está ausente dos seus menus?
Realmente estamos mais focados nos vegetais, por razões óbvias: para nós não faz sentido comer um animal gigante. Apesar de usarmos muito o borrego e as aves.
Sente que por estar no Chile perde muito da movida gastronómica europeia, que experimentou quando esteve no País Basco, por exemplo?
Claro. Estamos muito longe, até da América Latina. Mas viajo sempre que posso, apesar de necessitar de estar na cozinha, a cuidar da parte criativa.
Quando decidiu ser cozinheiro?
Nunca imaginei que viesse a ser profissional desta área, era mais desportista. Mas sempre gostei de cozinha – creio que os cozinheiros já nascem cozinheiros e só se tornam profissionais quando percebem que têm uma relação com a comida diferente das outras pessoas. Depois do curso que tirei no Chile, fui para a Europa e passei por todas as posições dentro da estrutura de um restaurante. Aos 24 anos comecei a dirigir uma cozinha, num restaurante em Santiago. Quando abri o Boragó, em 2006, sentia-me bem preparado.
O que quer dizer Boragó?
Nada. É um nome. Com acento, transforma-se numa palavra inventada, para que, de cada vez que lesse o nome, me recordasse que um acento muda a intenção das palavras. O mesmo se passa quando cortamos um ingrediente e o provamos – ele pode não saber bem, mas se o humanizarmos, transforma-se numa coisa maravilhosa.