Em 2012, o procurador Orlando Figueira decidiu trocar o seu gabinete no departamento do Ministério Público responsável pelas investigações mais complexas (o DCIAP) por um cargo no sector privado, pedindo então uma licença sem vencimento que muito deu que falar. Dois anos depois, chegava à Procuradoria-Geral da República (PGR) uma denúncia anónima dando conta de que o magistrado, que entretanto já tinha assumido funções no departamento de compliance do BCP, tinha recebido milhares de euros nas suas contas de uma sociedade angolana chamada Primagest, controlada pela Sonangol.
Em fevereiro passado, o Ministério Público concluiu que o procurador da República a gozar uma licença sem vencimento de longa duração tinha recebido 760 mil euros – quando ainda se encontrava no DCIAP – e um cargo dourado num banco para arquivar processos contra Manuel Vicente, vice-presidente da República de Angola e então presidente da Sonangol. Figueira é acusado de corrupção passiva, e de violação do segredo de justiça, branqueamento e falsificação de documento, em co-autoria. Manuel Vicente deverá responder por três crimes, sendo o mais grave o de corrupção activa.
Para justificar as quantias recebidas da Primagest, Orlando Figueira justificou-se ao Ministério Público com a apresentação de um contrato de trabalho com aquela empresa. Esse contrato previa que o local de trabalho seria em Luanda, Angola, e que o serviço seria prestado em regime de exclusividade, com um horário entre as 8h30 e as 12h30 e as 14 e as 18h. Mas, segundo frisou a equipa de procuradores liderada por Inês Bonina na resposta a um recurso de um dos arguidos, “desde a data da celebração desse contrato e do contrato definitivo até à data presente, o arguido Orlando Figueira nunca se deslocou a Luanda”. Para o Ministério Público, só este dado, por si só, seria “esclarecedor quanto ao carácter fictício de tal suposta relação de trabalho”: “Todos os indícios apontam para que os contratos (contrato promessa de trabalho e contrato definitivo) sejam fictícios, elaborados com o único propósito de justificar o recebimento, por parte do arguido Orlando Figueira, de avultadas quantias que este recebeu para praticar actos contrários às suas funções”.
Ainda assim, o Ministério Público enumera em detalhe porque não acredita na veracidade daqueles contratos. Para começar, quando finalmente consegue uma licença sem vencimento de longa duração, Orlando Figueira não vai trabalhar para a Primagest, em Luanda, mas antes para o Millenium BCP – não precisando de sair do país -, e “pese embora o contrato-promessa de trabalho com a Primagest contivesse uma cláusula de exclusividade”.
Além do mais, quando foi interrogado Orlando Figueira contou que entre a data da celebração do contrato-promessa (em janeiro de 2012) e os meses de março/abril de 2014 nunca tinha sido contactado pela Primagest para formalizar a celebração do contrato definitivo.
A equipa conduzida pela procuradora Inês Bonina não deixou de vincar o caráter “insólito” da situação: “Orlando Figueira (além de um inexplicável empréstimo de 130 mil euros) tinha recebido o montante de 210 mil euros para desempenhar funções laborais junto de uma entidade angolana em Angola, sendo certo que, durante mais de dois anos, não foi contactado pela suposta entidade empregadora, não exerceu qualquer actividade que justifique o pagamento de remuneração, mas, no entanto, decorridos esses dois anos sem nada fazer, a mesma entidade patronal manteve interesse na celebração de um suposto contrato de trabalho definitivo e ainda pagou em dinheiro montantes que se desconhece a que título, já que o arguido Orlando Figueira até essa data não desenvolvera qualquer atividade em seu benefício”.
A 3 de março de 2014 é assinado o contrato definitivo entre a Primagest e Orlando Figueira. Embora mantenha a cláusula de exclusividade, aceita que o procurador mantenha as funções de consultor de compliance no Millenium BCP e ainda o autoriza a exercer advocacia, permitindo que permanecesse em Lisboa e não em Luanda, “local que fora definido para a prestação das suas funções laborais”.
Durante o interrogatório, Orlando Figueira confirmou que nunca se deslocou a Angola para prestar qualquer serviço à Primagest. Disse sim que quando Paulo da Conceição Marques – que identificou como sendo o intermediário da Primaget e que não chegou a ser ouvido no processo por estar gravemente doente – se deslocava a Lisboa lhe colocava “as questões” e pedia “o seu parecer”. E conseguia Orlando Figueira explicar que empresa era esta? Não sabia em contrato, pois só tinha sido contratado para “a parte jurídica”. E que trabalhos tinha feito para a empresa? O procurador em licença sem vencimento respondeu assim: “consultoria verbal” e “outros”, vindo a escudar-se num suposto sigilo profissional para não revelar mais. Aqui, o Ministério Público não perdeu a oportunidade de lhe mandar mais uma rebocada: “Sigilo profissional que nunca invocou em relação às funções de magistrado do Ministério Público.”
Depois do primeiro interrogatório judicial, não restaram dúvidas à investigação de que Orlando Figueira nunca prestara qualquer serviço à Primagest, embora tivesse recebido daquela empresa, entre 2012 e 2015, pelo menos 500 mil euros. Era de estranhar, para o Ministério Público, que uma sociedade angolano tivesse disponibilizado a Figueira, de uma só vez, 210 mil euros “para a prestação de um alegado serviço de consultoria, cuja realização nunca lhe exigiu e, como se tal não fosse suficientemente estranho, continuou nos anos seguintes a efectuar-lhe pagamentos em numerário”.