Leia a reportagem
Viagem ao mundo das vidas destruídas (ou quase) pelo jogo
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Tem perfil de jogador abusivo?
Não me lembro da primeira vez que joguei, mas lembro-me da primeira vez que joguei fora das regras. Tinha 16 anos.
Com essa idade não podia inscrever-me em jogos a dinheiro online. A única opção era falsificar os dados de identificação.
Inscrevi-me como sendo o meu pai e comecei a jogar. Era uma brincadeira. Uma forma de ganhar dinheiro fácil. Só quando fiquei maior de idade, e passei a ter acesso mais facilitado a dinheiro, é que o problema do jogo se manifestou de forma muito mais ativa. Cumpria todas as minhas obrigações, mas tudo o que não fosse obrigação era posto de lado em favor do jogo.
O jogador de apostas online é um jogador invisível. Consegue manter uma vida aparentemente normal sem dar sinais de que tem um problema. Eu vivi uma vida assim durante seis ou sete anos. Trabalhava, estudava, treinava futebol e jogava. O jogo estava na minha cabeça 24 horas por dia. Na faculdade tinha o telemóvel por perto para acompanhar as apostas desportivas que fazia; no trabalho também. Durante o treino ia à casa de banho só para ver os resultados. Em vez de estar com a família, fechava-me no quarto a jogar. Em vez de sair com os amigos, ficava em casa a jogar. À noite, tinha o telemóvel por perto e, enquanto a minha namorada dormia, jogava a noite inteira.
Nem me lembro se dormia. Era um jogador consciente sabia que tinha um problema, só não fazia ideia como resolvê-lo. O impulso era continuar a jogar e apostar cada vez mais. Mas nunca gastei mais do que tinha. Era racional. Sabia que se o fizesse criava um problema ainda maior na minha vida.
As consequências que o jogo tinha para mim eram muito mais emocionais do que financeiras. Gastei pouco em relação a outros jogadores. Gastei cerca de 10 a 15 mil euros.
Quando digo gastar, é perder. Em termos de apostas foram milhões. Milhões, milhões, milhões. Recordo-me de num só dia transformar dez euros em dez mil euros. Num só dia. A quantidade de transações que fiz nessa semana superou dois ou três milhões de euros. Era tal o vício que eu nem queria saber disso, só queria saber quantas apostas acertava. Queria dizer “eu domino isto”, mas o jogo é que me dominava a mim.
Ser jogador é mentirmos constantemente a nós próprios.
É começar o dia a decidir que não vamos jogar e acabar o dia derrotado porque não conseguimos cumprir a promessa.
É convencermo-nos de uma coisa que sabemos que não vai acontecer, mas que temos muita vontade de cumprir. A única forma de deixar de jogar é baixar os braços e pedir ajuda. Ninguém obriga um jogador a deixar de jogar. A decisão tem de partir do próprio. Isto é uma doença de sentimentos.
Eu nunca me quis matar, mas lembro-me de querer desaparecer, de me querer esconder do mundo e não querer enfrentar a vida. Nos meus dias de jogo mais dolorosos inventava uma desculpa para ficar em casa e passar o dia inteiro na cama de olhos fechados.
Não há dia nenhum, depois de parar de jogar, que seja pior do que todo o tempo que jogámos. Mas a recuperação é muito dolorosa. Quando se perde a anestesia do jogo entra-se numa realidade dura. Ao mesmo tempo sente-se um alívio muito grande porque aparece a esperança.
Afinal, não vamos ter de passar o resto dos nossos dias a jogar, naquela espiral de sentimentos e emoções angustiantes.
Um jogador é sempre jogador, mesmo em abstinência ou em recuperação. Não estou grato por ser jogador, mas estou grato por conseguir controlar o meu problema.
Hoje, posso dizer que estou em recuperação. Levo a vida de uma forma muito mais honesta, não em relação aos outros mas em relação a mim próprio. E vivo realmente a vida. Mas é uma luta diária.