Os telefonemas eram frequentes: “Bárbara, como frito o bife? Bárbara, que sal compro, fino ou grosso? Bárbara, como faço o arroz?”. E por aí adiante. Uma vez foi mesmo parada na alfândega do aeroporto. Teve de explicar, tintim por tintim, o motivo pelo qual levava polvo cozido em vácuo para o estrangeiro. Tudo pelos amigos. E pelo arroz feito com o bicho. “Os estudantes que conheço e estão em Erasmus não sabem fazer nada. Nada! Por isso, além de lhes ensinar a cozinhar coisas básicas, decidi escrever um livro de receitas que os ajude a desenrascar quando estão fora sem perder o prazer de matar saudades da nossa comida”, explica Bárbara Loureiro, 24 anos, a cumprir um estágio na embaixada portuguesa em Praga (República Checa), no âmbito do mestrado em Relações Internacionais e Ciência Política.
Como está bom de ver, a vida da autora de Receitas Fáceis Portuguesas para Erasmus (Ideia-Fixa), é outra. Licenciada em História, Bárbara Loureiro procura rumos profissionais que não passam pela cozinha, mas em maio, nos intervalos da vida universitária, decidiu atirar-se à escrita. Do seu talento e ganas de estreante, saiu um livro com cerca de 80 receitas, onde não falta um dos ingredientes típicos da culinária portuguesa: o desenrasca, precisamente. São exemplo disso as Bolinhas Fingidas de Alheira com Chutney de Manga, onde não há sequer sombra do famoso enchido do nordeste transmontano: “É impossível encontrar alheira fora de Portugal. Não há nada parecido. Mas existem maneiras de fingir o sabor e matar as saudades”, explica ela.
De “serviçal” a chef
“Casa de ferreiro, espeto de pau” reza o ditado. A história de Bárbara desmonta-o. Filha do chef Hélio Loureiro, a autora destas receitas passou a meninice e a adolescência a despertar os sentidos e a apurar o palato, ora acompanhando o pai nas suas mais diversas atividades gastronómicas, ora envolvendo-se nos convívios familiares e de amigos lá por casa. Os rituais culinários e as memórias dos sabores ajudaram: “Ai, os scones ao sábado são inesquecíveis!”, suspira ela. “E a minha vida não seria a mesma sem tripas à moda do Porto. Cresci com isso”.
Aos poucos, foi-se abeirando da divisão da casa reservada às alquimias do fogo sagrado de Hélio Loureiro, entre tachos, frigideiras, panelas e talheres. Começou pelos bolos. “A minha mãe dizia que, na cozinha, eu nunca iria dar nada. E o meu pai só me queria por perto como serviçal. Deve ser por isso que ainda hoje detesto cortar batatas”, conta ela, divertida, ao telefone desde Praga.
O primeiro arroz, feito na adolescência, estava horrível. “Mas o meu pai decidiu dar-me uma abébia e disse que estava ótimo”. Foi o clique.
O chef consegue recuar um pouco mais no tempo. “A Bárbara começou andar comigo nas andanças dos banquetes e na cozinha do hotel aí pelos quatro anos. Gostava de assistir à confusão que é organizar um catering ou um grande jantar, fascinava-a a cozinha agitada”, recorda Hélio Loureiro, também ele autor de vários livros de culinária e até de uma obra de ficção, onde a comida é essencial à trama (O Cozinheiro do Rei D. João VI). Em casa, as primeiras receitas da filha foram os tais scones que ela adorava à hora do chá, com geleia e manteiga das marinhas. Depois, passou a fazer folar e pão. “Como qualquer criança adorava amassar e ver crescer a massa”. A casa de família foi a melhor escola: o vaivém de amigos e o culto dos convívios inspiraram-na e Bárbara começou também a ir às compras com o pai. “Fazia-lhe confusão ir sem lista e criar o menu na loja e no mercado. Mais tarde, começou a sua própria cozinha, mais voltada para os legumes e produtos biológicos”, recorda o pai que, numa primeira fase, até estranhou. “Sempre foi uma criança que gostou de tripas à moda do Porto e lampreia, não fugindo a um arroz de cabidela”, explica, “mas estes novos tempos arrastaram-na para os valores da Terra e da sua preservação”. Por isso, Bárbara Loureiro se diz “flexitariana”, ou seja, “um misto de vegetarianismo e consumo de pratos tradicionais da cultura portuguesa”. Quando é ela a comandar a cozinha, até a família já se baba. “Faz belissimamente um delicioso queijo de cabra gratinado e um folhado de legumes com chutney. Nos doces, a tarde fria de banana é imperdível”, garante Hélio Loureiro.
Manual de sobrevivência
O livro junta o melhor de vários mundos para amadores que se querem armar em requintados. E talvez consigam. Começa com a “cozinha para totós”, onde qualquer inadaptado pode experimentar fazer molhos ou cozer arroz branco e segue para o capítulo “Há Festa na Aldeia”, onde não falta um trio de queijos, canja, saladinha de polvo à algarvia, rissóis do avô Loureiro, ovos verdes, bacalhau em farrapo velho como o de Natal, peitos de frango panados com uvas brancas e mais umas quantas receitas de desencaminhar a mais empedernida das almas. O inevitável leite-creme e as maçãs assadas com Vinho do Porto fazem parelha nas “Sobremesas”. Para ali não são convocadas santidades, mas sim um bolo de chocolate pecaminoso. Bárbara Loureiro também não se esqueceu das “Receitas Lá de Casa”, entre as quais o pica-pau de novilho e o arroz de pato. Mas o que pode tornar a vida do estudante Erasmus uma via rápida para o sucesso são as “Receitas para Viagens”, verdadeiro desfile de empadinhas de legumes, peixinhos da horta e tosta com húmus e pimento vermelho, só para ficarmos por aqui.
Como a vida são dois dias (três, vá, se a mesa ainda chamar por nós), a autora tratou de garantir um manual de sobrevivência para qualquer universitário apanhado nas recaídas de elevado teor alcoólico.
No capítulo “Há Ressaca na Aldeia”, sugere-se o regresso, em lume brando, ao quotidiano, com sopa de lentilhas, sumo de tomate temperado ou legumes espirituais, entre outras especialidades capazes de levantar um morto ou, pelo menos, mantê-lo sossegadinho no sofá, sem grandes baloiços. O livro inclui ainda um glossário de termos básicos (escalfar, estufar, por aí) e, talvez, a receita mais importante para qualquer estudante que, tal como Bárbara Loureiro, tenha de resumir a existência a uns metros quadrados bem contados. “Quando não sabes onde meter o povo!” é o capítulo com segredos para juntar os amigos naquele apartamento minúsculo sem que o pessoal se sinta sardinha em lata. “Aproveita a banheira de casa: enche-a de gelo e água e põe as cervejas e o vinho a refrescar”, é apenas uma das dicas.
Bárbara quis fazer um livro para que os estudantes como ela se sentissem em casa lá fora. Sem choraminguices por causa das saudades da sopa da mãe ou da tarte da tia. Mas desengane-se o leitor se pensa encontrar tudo o que lhe der na telha ou lhe peça o estômago: “Azeite português ou tremoços é para esquecer. Aqui, na República Checa, sinto muita falta de iogurtes, os queijos não são a mesma coisa e percebo como o bacalhau é essencial na vida de um português longe do País”. Mas nem tudo está perdido. Quando a autora fez chegar a versão final das suas receitas a alguns amigos, as reações não tardaram: “Bárbara, este livro só tem um problema: veio com dois anos atraso”.