9H40 Com encontro marcado numa pastelaria das Avenidas Novas, em Lisboa, Tiago Pires aparece com Vicente, ainda ensonado, ao colo – o seu primeiro filho nascido no ano passado. “Antes era só ginásio e surf. Desde fevereiro, quando me afastei das competições internacionais, há muitas fraldas e chuchas para encaixar entre a atividade desportiva”, desabafa o surfista enquanto bebe o primeiro café do dia. Só aos 27 anos começou a consumir e a apreciar café, numa altura em que os treinos bidiários pediam alguma cafeína para suportar o esforço. Vicente é o “menino do papá”. Foi por ele que, resvés a fazer 36 anos, Tiago desistiu de competir nos campeonatos mundiais, que o colocaram durante sete anos, entre 2008 e 2014, ao lado da elite mundial do surf. Hoje, é amigo dos melhores do mundo como o americano Kelly Slater (onze vezes campeão mundial) ou o tricampeão australiano Mick Fanning. “Quero aproveitar a paternidade de uma forma calma ou quero perder este momento da vida?”, questionou-se.
Desengane-se quem pensa que o maior surfista português mora numa casa em frente à praia. Foi assim “com vista para as ondas”, na Ericeira, durante 15 anos, dos 18 aos 33, mas entretanto casou com Matilde, uma lisboeta que na verdade é madeirense, e começou a gostar da agitação da capital. “Na Ericeira, quando vou no carro estou sempre a acenar a toda a gente.”
10H40 A caminho de casa da sogra, onde Vicente vai passar o dia, Saca, como todos o chamam (uma alcunha dada pelo pai), confessa que se ainda estivesse no ativo, estaria a preparar uma ida ao Taiti onde decorre uma das provas de que mais gosta. “É um dos cenários mais paradisíacos do circuito. Desde que nos instalamos até ir embora não se pega no carro e todas as ligações são feitas de barco. Parece que estamos de férias.” Mesmo assim não deixa de planear uma ida ao México, Nicarágua, Panamá ou El Salvador para se lançar ao mar, por puro prazer.
É ao volante de um Range Rover, sem nunca perder a calma, que Tiago enfrenta o trânsito e as obras na capital. Esperam-no na Avenida da Liberdade, para, no palco do Cinema S. Jorge, gravar a última entrevista do documentário Saca – O filme de Tiago Pires. Uma ideia própria que a RedBull, um dos seus patrocinadores, não hesitou em acolher. “Existem documentários sobre surf, mas poucos sobre os atletas”, explica. Para a realização, escolheu Júlio Adler, ex-surfista profissional (deixou a competição em 1997) e um dos mais respeitados jornalistas de surf (escreve na revista Surf Portugal). Aos 49 anos, é a primeira vez que Júlio Adler realiza um documentário. “Filmava, editava e participava noutros projetos de surf. Primeiro fiquei lisonjeado, só depois me assustei com a importância do filme para Portugal e para o próprio atleta”, explica no final da gravação da entrevista.
“O documentário é muito mais em torno da história de um surfista que passou 20 anos a competir e agora abandonou”, conta Júlio Adler que foi campeão carioca, em 1990. Depois de ter vivido numa espécie de bolha, Tiago Pires tem agora uma vida mais cosmopolita, “preocupa-se com as beatas e o cocó dos cães no chão”, exemplifica o realizador. Entre as 60 entrevistas há depoimentos de seis campeões mundiais que mostram a relação dos grandes com as derrotas, que “servem só para os fortalecer.”
Sentado num banco de madeira, de costas para as cadeiras de veludo vermelho da plateia, Tiago Pires recorda episódios da sua carreira, como a relação com o treinador José Seabra que, aos 15 anos, lhe disse que o seu futuro deveria passar pela Califórnia. Mas, Tiago prometera à mãe que terminava o 12.º ano em Lisboa. Aos 9 anos adorava desenhar plantas de casas, e como passava o tempo no ateliê de um arquiteto, pai de um amigo, achava que ia seguir o mesmo caminho. As más notas a Matemática afastaram-no da ideia e virou-se para as Humanidades, interessado em Jornalismo. Nessa altura, Saca usava o cabelo comprido e era o único surfista do colégio privado. As rivalidades, as fúrias e a primeira derrota, aos 15 anos, que o fizeram chorar na praia, também fazem parte do filme com estreia marcada para 18 de outubro nas salas de cinema e depois num canal de televisão.
13H40 Almoçamos numa pizzaria e em época de figos, o surfista não hesita em pedir uma pizza com este fruto. Há poucos dias tinha ido a Roma, só com a mulher – ambos são grandes apreciadores de comida italiana. Tiago trazia na bagagem a certeza de que já sabe distinguir uma boa pizza. “O segredo está na simplicidade dos ingredientes”, diz. Era suposto ter ido treinar, mas como tinha uma reunião marcada para depois do almoço teve de abdicar do treino no Centro de Alto Rendimento do Jamor. Costuma trabalhar com o preparador físico de râguebi, José Carvalho, e garante que “nunca há treinos iguais, uns puxam mais pelo cardio, outros pela resistência”. Antes treinava quatro vezes por semana, agora já se pode dar ao luxo de faltar, mas ressente-se e cansa-se muito mais depressa. Entre uma fatia e outra vamos falando do facto de as competições de surf serem organizadas por empresas, sem apoios estatais.
“A via profissional do surf não é federativa, por isso quando se ganha não se ouve o hino de Portugal nem se recebem condecorações”, lamenta. No entanto, Tiago Pires nunca deixou de exibir a bandeira portuguesa às costas. Os troféus conquistados estão espalhados um pouco por todo o lado, entre o Ericeira Surf Clube, a sua casa e a da mãe. “É difícil escolher o mais importante, pois cada um significa uma vitória diferente, um momento feliz. Talvez destaque o que trouxe do Havai, em 2000, do Sunset Beach. Tinha 20 anos, era muito novo e intrometi-me no meio dos gigantes, como Sunny Garcia ou Andy Irons [morreu em 2010].” Competidor nato, Tiago Pires tem um estilo da escola mais clássica. “Há muitos heróis do surf que nunca competiram.”
15H20 “O que conhecem do projeto do Tiago?”, questiona Isabel Corte-Real, relações públicas do surfista que também participa na reunião com três responsáveis do MCS Extreme, novo canal de televisão da Meo dedicado aos desportos radicais. Com o filme em fase final de montagem, Tiago Pires anda à procura de parceiros para difundirem o seu documentário. Interessa-se por saber que canal é este e que desportos cobre. Além de motocross, speedway, x-games, x-fighters e documentários de surf, querem produzir documentários locais, apostando em perfis dos surfistas. Vem mesmo a calhar. “Simples e sem pretensão, o filme tem três grandes focos: como começou a modalidade em Portugal até à data em que apareci [1995/1996], a minha carreira e o momento em que parei de competir. Quero levar para o cinema uma história que veio do mar e do surf.”
17H30 A caminho da praia de S. Julião, na Ericeira, onde sempre que pode vai surfar ao final do dia, há tempo para uma paragem na fábrica de pranchas Mica Surf Boards. Shaper há quase três décadas, Amílcar Lourenço, ou Mica como é conhecido o filho da terra, é exímio a fazer pranchas que se colem ao corpo, tal como a modalidade obriga. Se França era a meca das fábricas de pranchas, agora as marcas mudam-se para Portugal, pois a mão de obra é especializada e mais barata.
“O formato depende da altura, peso e nível do surfista, bem como da praia. Para o mar difícil do Oeste, o daqui da Ericeira, a prancha tem de ter mais curvatura e as bordas mais baixas porque a onda é mais cavada, mais forte”, explica Tiago. “A prancha que usava aos 15 anos já não me serve, pois na altura pesava 50 quilos e agora peso 70.”
Em casa tem 80 pranchas e usa a que lhe apetece, porque não está vinculado a nenhuma marca. Já com a roupa do dia a dia e com o fato de surf é Quiksilver da cabeça aos pés.
19H05 É do deck do Limipicos, o último bar do novo passadiço da Foz do Lizandro, que Tiago Pires vê como está o mar. “Esta nortada da Ericeira não é a ideal para surfar, o ideal é vento de leste. Na Ericeira as marés influenciam muito as ondas, temos de esperar que vaze mais um pouco”, acrescenta enquanto lancha uma taça de açaí com frutos vermelhos, banana e granola. Apesar do aspeto saudável, Tiago assume ser apenas o resquício de um atleta, pois já teve uma alimentação muito mais regrada. Aos 18 anos deixou de comer carne vermelha e não sente falta. Mesmo às sete da tarde espalha no rosto protetor solar fator 100, só encontrado em Marrocos, pois à noite não quer ouvir um raspanete da mulher, como o que ouviu em pleno hospital quando, em fevereiro, bateu com a cabeça e o ombro, sofrendo dois traumatismos, ao surfar a Cave, uma onda muito perigosa na praia ao lado da dos Coxos. “Um pequeno percalço, mas um grande susto”.
O verão, ao contrário do que se possa pensar, não é a melhor altura para “trabalhar”. “O nosso escritório é na praia”, e estão cheias, há poucas ondas (pois são as tempestades invernosas que levantam o mar) e para preservar a imagem os surfistas evitam as multidões. Hoje é como peixe na água, mas tal como o seu filho que ainda tem medo de chapinhar, também Tiago tinha pânico da água até aos quatro anos.
A noite haveria de terminar como “embaixador” de uma festa organizada pela discoteca Ouriço. Mesmo sem entrar em competições, mantém o patrocínio da Quiksilver, por mais quatro anos, e da RedBull até 2017, Tiago Pires tem em mente “um projeto que não existe nem em Portugal, nem no mundo”. Diz que não é restauração, nem hotelaria. O que será?