“Não gosto de pessoas que se matam, acho uma falta de educação”. A frase apareceu inscrita pela primeira vez há dez anos, quando o escritor Rui Cardoso Martins lançou o seu primeiro livro. “Era uma frase da minha mulher. No meu Alentejo, que eu retrato nesse livro, o suicídio nunca é algo natural, é sempre um drama, um mistério. É algo tão forte que não deve ser julgado por umas bojardas que se dizem na televisão. Mas atenção, apesar de poder não gostar do estilo – e não conheço o livro para o afirmar – sou da opinião de que o Henrique Raposo deve publicar tudo o que quiser. Há aqui uma inflamação de um sentimento que não me parece de todo saudável…”
Outro alentejano, e também de Portalegre, João Miguel Tavares começa por fazer exatamente o mesmo preâmbulo antes de se pronunciar sobre o assunto: “O Henrique Raposo tem todo o direito de escrever o que quiser. Não há nada que justifique isto, há aqui um imenso desvario.” Para depois sair em defesa do livro. “Gostei muito – pela maneira como conta a sua biografia e a mistura com os dados que há sobre o assunto. Além disso, o facto de ele reconhecer que há suicídio no Alentejo não quer dizer que não goste da sua terra.”
Recorde aqui o vídeo da entrevista que deu início à polémica
Histórias muito lá de casa
O livro de que se fala chama-se Alentejo Prometido e é, segundo a apresentação da Fundação Francisco Manuel dos Santos, um “road movie familiar”. O autor, Henrique Raposo, articulista do Expresso, conta-nos em pouco mais de 100 páginas, a sua visão do Alentejo, misturando histórias familiares e memórias pessoais, para falar de mulheres, suicídio e do seu complexo de desenraizado.
Filho de alentejanos que migraram para a Grande Lisboa nos anos 1960, Henrique Raposo viu-se debaixo de fogo depois da entrevista que deu na SIC Radical, no programa Irritações, há duas semanas. “Para um alentejano, um suicídio é como se fosse um fenómeno natural: ‘Olha, matou-se'” ou “As alentejanas antigas nem sequer usam a palavra violação para descrever os abusos que sofriam: Ele chegou-se ao pé de mim e pronto” foram duas das frases mais criticadas.
Desde então, foi como se se tivesse lançado uma verdadeira intifada contra o livro: a página do Facebook chamada Henrique Raposo – inimigo número 1 do Alentejo e Algarve tem mais de 11 mil seguidores. Seguiu-se o cancelamento da apresentação do livro, anunciada para a Galeria Tintos e Tintas. Já foi escolhida nova data e lugar (8 de março, Livraria Bertrand, Picoas Plaza, 18h30) – mas a Fundação fez um pedido informal à PSP para avaliar se é necessário um reforço da segurança no local.
Na sua página de Facebook, Henrique Raposo começa por dizer que não vai prestar declarações sobre o assunto mas lá acaba por escrever: “Isto é uma espécie de tribunal popular e eu não me vou sentar no banco dos réus”.
Muitos saíram já em sua defesa – ou pelo menos do seu direito em escrever o que quiser, mesmo que não se goste. Foi o que fez José Manuel Fernandes, na sua crónica do Observador (“Uma perseguição que lembra o radicalismo de uma fatwa“, a propósito dos vídeos publicados no Facebook a mostrar pessoas a queimar o livro) e também Ferreira Fernandes (“Henrique Raposo tem o direito de escrever o que lhe der na gana”). Na sua página do Facebook, Francisco Moita Flores, escritor, antigo investigador da Polícia Judiciária, alentejano de Moura, publicou: “Não gosto das prosas de Henrique Raposo. Acho-as rudes, simplistas, num português duvidoso. Tenho esse direito.” Mas há de acrescentar mais à frente, no mesmo post: “Magoa-me que na terra do Henrique e minha, de todos nós, no nosso País, haja o lançamento de um livro com polícia à porta. É sinal de que a flor da tolerância e da diferença de opinião está a murchar. A culpa não é do Henrique. Nem do Alentejo. Nem do seu livro. A culpa é de todos nós, sedentos de censura, ainda aprendizes da nossa pequena Liberdade”.
Sobre o suicídio no Alentejo, e o seu predomínio em relação ao resto do país, ninguém parece ter grandes dúvidas sobre isso. A preparar o relançamento de E Se Eu Gostasse Muito de Morrer, o escritor Rui Cardoso Martins faz ainda questão de relembrar os dados que citou da Sociedade Portuguesa de Suicidologia, mesmo sendo de 1998: “O rácio é de 2 a 4 por cem mil no norte do país e 20 para cem mil no Alentejo. No caso dos homens, sobe para os 30 por cem mil. E isto é um assunto sério”.