Era “O Broalhas”, analfabeto. “O Mouco”, analfabeto. Também “O Bexiga”, “O Muleta”, “O Pichela”, analfabetos. As alcunhas colavam-se à pele e com elas se vestiam no quotidiano sombrio, todo ele do avesso. Ao todo, 31 operários mineiros foram detidos pela PIDE, no pós-Guerra, na sequência de uma luta que acabaria por resgatar um pouco da dignidade perdida ao fundo do túnel e teria impacto a nível nacional. Poucos sabiam ler e escrever. Muitos chegaram a trabalhar nus por não suportarem o calor. Todos viviam miseravelmente debaixo da alçada militar e das ameaças e repressões diárias de um regime que deles fazia, de forma quase literal, carne para canhão. Não podiam trabalhar com fome – A greve de 1946 nas minas de São Pedro da Cova (Editora Lugar da Palavra), é o resultado de um esgravatar exaustivo em diversos arquivos locais e nacionais, de recolhas orais e outras. Mas também, já agora, das biografias que não se escolhem, ou não fosse o autor, Daniel Vieira, presidente da junta de freguesia de Fânzeres e São Pedro da Cova, neto de mineiros. “A coragem e a resistência daquela gente, em circunstâncias muito difíceis, é a mensagem que vale a pena destacar nos dias de hoje, sobretudo quando muitos ainda vivem apáticos, resignados, amorfos e com medo”, refere o autarca da CDU à VISÃO. Daniel decidiu transformar a sua investigação universitária, uma dissertação de mestrado em História Contemporânea, “num testemunho para as novas gerações”. O livro tem apresentação marcada para esta sexta-feira à noite em São Pedro da Cova, com apresentação do historiador Manuel Loff.
O subsolo da dignidade humana
Foi a 27 de fevereiro de 1946 que tudo começou, passam agora 70 anos. Uma larga maioria de operários, despolitizados, ousou enfrentar o Estado Novo, sem olhar às consequências. As minas de São Pedro da Cova eram, por essa altura, uma espécie de desterro, o lugar onde rastejava a dignidade humana. Durante 170 anos dali foram extraídas toneladas de antracite que serviram uma boa dose das indústrias emergentes (siderurgia, metalurgia, alimentar, etc) do País. Milhares de pessoas oriundas de vários pontos do território nacional encontraram sustento naquela freguesia de Gondomar. Mas o reverso da medalha perdurou: famílias inteiras passavam fome, trabalhavam quase sem descanso em condições que apressavam a morte, esgotadas e doentes. As suas vidas, descontadas as relações sociais, dependiam da empresa exploradora mineira, do pão à casa onde moravam. “A cantina, a farmácia, tudo era dos patrões. E ainda hoje, duas das mais ativas instituições da freguesia, a banda de música e o clube de futebol, foram uma criação desse sistema no qual a empresa mandava em tudo”, aclara Daniel Vieira, também ele membro da banda desde os 11 anos.
O que os operários ganhavam estava, em média, no subsolo do que o próprio regime considerava o patamar mínimo para “viver com decência e na maior modéstia”. Um dia fartaram-se. “Não podemos trabalhar com fome”, diziam uns aos outros, como quem partilha a única migalha que resta para sobreviver um pouco mais. Num universo de 800 operários, a greve teve mais de 80 por cento de adesão. Seguiu-se a detenção de uns quantos, a perseguição a todos, a violência, os espancamentos a varrerem os dias e os corpos, tudo despesas a cargo da PIDE e da GNR. Mas a luta valeu mínimos de dignidade para todos. “Conseguiram ser aumentados 15 por cento nos seus salários. Só por isso, já valeu a pena”, resume Daniel.
A herança das minas permanece, porém, na freguesia.
Apesar do seu encerramento no pós-25 de Abril, a conquista das liberdades e da democracia gerou melhorias nas condições de vida das populações, mas ainda hoje, assegura o presidente da junta, “o analfabetismo não foi completamente ultrapassado e São Pedro da Cova continua a ser a população de Gondomar com maior percentagem de acesso ao Rendimento Social de Inserção”.
Como se isso não bastasse, a freguesia enfrenta ainda um problema indiretamente relacionado com aqueles tempos. Em 2001, os resíduos da Siderurgia Nacional foram depositados nos terrenos e instalações das antigas minas. Dizia-se então que os mesmos eram inertes e não constituíam perigo. A mentira teve perna longa, mas, ao longo dos anos, a autarquia conseguiu demonstrar não ser bem assim. Muitos estudos depois, comprovou-se a existência de lixo tóxico em quantidades verdadeiramente alarmantes e disseminado por zonas não identificadas inicialmente. Há poucas semanas, o Parlamento aprovou por unanimidade a remoção integral dos resíduos perigosos, aos quais uma exposição continuada pode conduzir a danos irreversíveis, entre os quais a morte. “Agora que existe um consenso generalizado sobre a urgente remoção dos resíduos, falta a calendarização e a verba para a execução dos trabalhos”, explica Daniel Vieira, que aguarda agora o agendamento de uma reunião no Ministério do Ambiente. Uma coisa é certa: São Pedro da Cova tarda em livrar-se dos seus males. E se alguns têm origem há 170 anos, outros, mais recentes, continuam a minar as esperanças que ainda restam. “Não conheço uma região que seja rica em recursos naturais que viva bem. Deve ser sina. Mas talvez agora tudo se resolva”, crê Daniel.