Podemos começar respeitando as regras jornalísticas: a Cuf processou a família de Tereza Coelho por não ter pago a conta do hospital e acabou a responder por negligência médica. Contudo, talvez faça mais sentido recorrer ao estilo narrativo. Porque estamos numa sala de audiências, perante funcionários judiciais, mas o ambiente é literário. Na cadeira reservada às testemunhas, o escritor António Lobo Antunes senta-se de forma displicente, repetindo a mesma frase, a cada pergunta da juíza do Tribunal Cível de Lisboa: “Era bonita. Era uma mulher muito bonita.” Tereza Coelho era a sua editora. O marido, Rui Cardoso Martins, venceu o Grande Prémio de Romance e Novela em 2009, com Deixem Passar o Homem Invisível. E o motivo que os juntou a todos perante um juiz é o mais literário de todos: a morte. A morte de Tereza. Por negligência, segundo o viúvo, que queria apenas esquecer. Mas o hospital não parava de enviar contas para sua casa, e em nome da falecida. Recusou pagar, foi processado. Chegou a tribunal como réu e acabou a exigir uma indemnização ao Grupo Mello Saúde.
Para compreender o enredo é preciso recuar à madrugada de 31 de dezembro de 2008. Tereza Coelho recorreu à urgência do hospital Cuf Descobertas, em Lisboa, com queixas de falta de ar e cansaço. Nos cinco dias anteriores tinha tomado o antibiótico Zitromax. Mas, em vez de melhorar, piorou.
O médico que a atendeu no hospital do grupo Mello entendeu tratar-se de uma amigdalite. Mais não pesquisou nem suspeitou.
Pelo contrário. Disse-lhe: “Ainda não vai festejar o réveillon na rua, mas daqui a dois dias está boa.” Com estas palavras, convenceu a família e a própria Tereza Coelho de que não havia razões para preocupação. Embora frágil, e apoiada no marido, a editora deixava o hospital pelas três da manhã. Regressaria sete horas depois. Para morrer.
Entre a amigdalite e o fim
Em tribunal, a Cuf tentou demonstrar a fragilidade de Tereza Coelho, que sofria de um meningioma (massa benigna no cérebro) desde os 20 anos e tinha passado por uma operação muito delicada meses antes. “Não me lembro da doente, mas lembro-me bem do caso”, admitiu Marcos Miranda, o especialista em Medicina Desportiva que atendeu Tereza Coelho nas urgências da Cuf.
Não devia ter sido internada? “Não. Apresenta-se com quadro de amigdalite e não tem critérios de gravidade.” A pneumonia na origem da septicemia que lhe matou os órgãos, um a um, até à falência completa, foi detetada às 10 da manhã. Horas depois de ter sido vista por Marcos Miranda. No entanto, ele insiste: “Não tenho indício clínico de que tivesse [pneumonia]. Não observei nada disso.” Boa parte do julgamento foi ocupada com esta dúvida: pode uma pneumonia fatal ficar suspensa entre o antes e o depois de uma observação médica? “A nossa função nunca é excluir o mais grave. Uma pneumonia não aparece de repente, é a resposta a uma infeção. O Zitromax é um dos medicamentos mais usados para a amigdalite. Se tinha tomado e não resultou, devia ter levantado a suspeita de que o diagnóstico seria outro”, disse Filipe Fróis, pneumologista, consultor da Direção-Geral da Saúde, ouvido como perito, depois de ler o relatório da autópsia.
A advogada da Cuf contestou conclusões vindas de um perito que não chegou a ver a doente. Mas Filipe Fróis não hesitou: “Eu, e qualquer pessoa que trabalhe comigo, teria feito um raio X. A pneumonia não se instala em horas, e é uma das principais causas de septicemia.”
Últimas palavras
Ao primeiro pedido de ajuda, às 3 da manhã, responderam-lhe com amigdalite. Ao segundo, às 10, tudo aconteceu com a rapidez determinista da morte. Depois de entregar a mulher a uma cadeira de rodas, guiada por um funcionário, Rui Cardoso Martins teve de deixá-la para estacionar o carro. Quando voltou a entrar no serviço, deparou-se com a inquirição da médica Fátima Santiago, quase em tom de ralhete: “A sua mulher está em perigo de vida. Como é que isto aconteceu?” Estupefação. “Mas disseram que era uma amigdalite e mandaram-na para casa.” Surpresa.
“Onde?” Insistência. “Aqui?” A pneumologista ainda se lembra do caso de Tereza Coelho. Registou para memória futura aqueles retalhos da vida que nem os médicos sabem explicar: uma caixa multibanco em fundo, enquanto Rui Cardoso Martins a interrompia no corredor para lhe dar a notícia que ninguém quer dar. Como resposta, apenas um: “Ó Meu Deus! Ó Meu Deus!” Na altura, saiu-lhe a emoção que aos médicos também pertence. Seis anos depois, Fátima Santiago invocou a objetividade possível da medicina para responder às perguntas da juíza: “Só sei o que eu faria. No lugar do meu colega, teria pedido o RX. Tendo em conta a evolução, não acredito que horas antes estivesse boa para a mandarem para casa”. Embora lembrando que os serviços e os profissionais estão à beira do esgotamento, arriscou: “O colega não teve os cuidados necessários.” O erro ditaria o regresso fatal às urgências.
Era preciso antecipar o sono de Tereza, que já não sairia do coma induzido. Faltavam ainda 17 dias para o fim definitivo.
Mas as palavras já soavam últimas: “Se eu morrer, tratas dos nossos filhos?” A apelos assim não se pode responder com a verdade toda. Mas também não se pode mentir. “Não vais morrer porque eu amo-te. Mas trato.”
Morte súbita
A orfandade dos filhos, na altura com 8 e 10 anos, fica no arquivo da dor eterna. Especialmente porque, como explicou Daniel Sampaio à juíza, as mortes não são todas iguais. As repentinas, as inexplicáveis, as evitáveis, doem mais.
Doem em sítios a que ninguém sabe como chegar. “A morte é sempre difícil, mas quando é súbita é muito mais difícil. Os mecanismos de proteção não estão em ação e as pessoas não conseguem adaptar-se à situação.
Até as crianças sabem que uma amigdalite é uma coisa benigna. Não é possível uma família adaptar-se a uma morte tão súbita.” O passado clínico de Tereza, embora complexo, não justificava a morte, alegou a advogada de Rui Cardoso Martins. Além do angioma, a ex-jornalista do Público tinha sofrido de anorexia. “As pessoas com anorexia nervosa só podem engravidar depois de curadas. Tereza esteve bem da anorexia e engravidou. Um duplo triunfo. É verdade que o angioma mexeu com ela, mas nada que justificasse tratamento comigo”, explicou o psiquiatra Daniel Sampaio, que acompanhava a editora.
Depois da última operação ao angioma, afiançou o seu fisioterapeuta em tribunal, a recuperação fora extraordinária: “Já corríamos os dois, lado a lado.” Lobo Antunes recordou o cansativo programa que fizeram juntos nos EUA, percorrendo várias cidades para acompanhar as entrevistas e conferências do escritor. Rui Cardoso Martins falou da viagem de pai, mãe e dois filhos a Londres, para comemorarem a recuperação. Na editora onde trabalhava, a D. Quixote, também tudo regressara à normalidade.
Tereza Coelho tinha 49 anos, boa parte deles passados com os livros e os seus autores.
Primeiro como jornalista de Cultura, no Público. Depois como tradutora de Marguerite Duras, além de editora de Lobo Antunes e Mário Cláudio. Poucos dias antes do internamento na Cuf, Tereza fez descontraidamente a viagem entre Portalegre, onde tinha passado o Natal com a família de Rui Cardoso Martins, e Lisboa, de autocarro.
Família indignada
Quando os capítulos são demasiado longos, não se consegue começar um antes de acabar outro. É por isso que o escritor quer pôr fim à sua história de não-ficção. Em tribunal, ouviram-se as alegações finais sexta-feira, 5 de junho. A sentença chegará nos próximos meses.
O pai de Tereza, Jorge Coelho, juiz reformado, preferia ter-se desviado de um processo judicial. Mas as provocações não paravam de chegar. “Ao princípio não era partidário que se pusesse ação contra o hospital. Queríamos esquecer. Mas depois de enviarem as cartas… achei bem.” As “cartas” exigiam o pagamento das contas. Mas também desejavam Feliz Natal. “A uma pessoa que morreu lá!”, revolta-se o marido.
Além da insistência no pagamento da conta que não se sentia obrigado a pagar, os filhos terão sido uma das principais motivações para o processo contra a Cuf. “Não sabiam de nada.
Só lhes contei há alguns meses, quando percebi que isto teria de chegar a tribunal.
Ficaram aliviados por saber que o pai estava a batalhar para que se soubesse a verdade sobre a morte da mãe”, contou Rui Cardoso Martins à VISÃO.
A seguradora de Tereza Coelho tinha já pago 20 mil euros à Cuf, o máximo coberto pela apólice. Faltavam 11 568 euros. Todo o processo judicial começou pela reclamação deste valor, com Rui Cardoso Martins como réu. Mas, tratando-se de ação declarativa, o réu pode passar ao contra-ataque e a Cuf poderá acabar a pagar uma indemnização até 600 mil euros, caso a juíza considere provada a negligência médica e os danos morais à família de Tereza Coelho.
Confrontado pela VISÃO, o grupo Mello Saúde limitou-se a dizer que aguarda pelo final do processo. Ainda assim, adiantam: “Estamos convictos de que os procedimentos clínicos realizados foram os mais adequados.” Depois da morte repentina da editora, Lobo Antunes dedicou-lhe uma das suas crónicas, na VISÃO. “Rui, eu gosto muito de si. Deus, neste momento não gosto nada de Ti (…) Vens lá de cima fazer isto? Há coisas que doem, no caso de andares distraído.” O escritor zangou-se com Deus. Mas será Ele o culpado? Cabe agora ao tribunal decidir se a morte de Tereza Coelho foi obra de Deus ou dos homens.