A diversidade de género é uma realidade conhecida e aceite em Portugal?
A atribuição do género é feita com base numa avaliação genital e na socialização, numa lógica dicotómica. Não há uma tradição de questionamento, ele só acontece quando o género não coincide com o sexo biológico.
As categorias de género do FB expressam novos fenómenos sociais ou a consciência do que já existia?
Há mais noção de que o modelo dicotómico não conta a história toda. Foi usado pela medicina com o objetivo de classificar, conhecer e controlar a diversidade mas esta não se compadece com modelos restritos. Agora, assistimos à explosão pública do desconforto silenciado há décadas, sobretudo por movimentos sociais que dão voz a estas demandas. A diversidade sempre existiu, a visibilidade que assume é que é nova.
Este elenco de categorias de género – mais de 50 – é credível?
As categorias não são mutuamente exclusivas. Uma pessoa que seja mulher transexual, pode situar-se na categoria MTF (male to female) mas também na Transgénero. Há algumas designações que já estão a entrar no léxico, como o Cisgénero, mas outras nem tanto, como o Neutrois (sem tradução para português). É uma área em constante expansão, com grande margem para a subjetividade.
Sem haver uma intenção científica, qual o alcance da proposta do FB?
O elenco foi feito após auscultação de pessoas que trabalham nesta área. Questionar o pensamento dicotómico gera inquietação, que estas categorias visam colmatar, dando nome e legitimidade a realidades que existem, permitindo que as pessoas se vejam descritas como se auto percecionam. O que se passava até aqui era as pessoas encontrarem opções muito limitadas, e com as quais não se identificavam, quando preenchiam o seu perfil.
Se a funcionalidade do FB chegar a Portugal, há maior risco de se criarem identidades fictícias (avatares)?
O que está pensado pelo FB é alargar a possibilidade de identificação fora do âmbito masculino v.s. feminino a outros países, trabalhando com pessoas noutros contextos geográficos. O pior que podia acontecer era importarmos um modelo globalizado sem levar em conta as geografias variáveis da sexualidade. Quanto às ficções identitárias, isso também acontece com o modelo dicotómico e são situações residuais.
Quais as implicações desta maior liberdade de escolha?
Não podemos ter vários compartimentos fechados à chave. Os seres humanos estão em construção e são sujeitos a múltiplas transformações ao longo da vida. Nascemos com um carimbo que nos é atribuído por outrem. À medida que vamos crescendo vamos construindo a nossa identidade sexual. Por muitas categorias que existam, não são imutáveis. Alargando categorias, alarga-se também a perceção social. As fronteiras ficam mais ténues e ainda bem que assim é. Essa liberdade deve ser aceite e respeitada.
Ainda se confunde orientação sexual e identidade de género?
A orientação sexual refere-se à atracção, desejo e afetos, independentemente da identidade de género. Esta descreve a forma como cada pessoa se identifica: masculino, feminino, ambos, ou nem uma coisa nem outra. O género não é orientação sexual, descreve expectativas e papéis socialmente atribuídos à pessoa. É esperado, por exemplo, que as mulheres biológicas tenham menos força física que os homens biológicos. São ideias ancoradas em estereótipos, sem sustentação sólida.
Se combinarmos as duas variáveis vamos ter muitos desfechos possíveis. É um problema?
Tudo isto se vai complexificar. Basta pensarmos que há pessoas que se definem como assexuais. Ou intersexo. São situações de grande vulnerabilidade para as crianças e famílias, que não sabem como lidar com isso. Há uma expectativa cultural, e médica também, no sentido de pressionar para uma decisão, sobre se a criança será construída como menino ou menina. O entendimento, a nível internacional, é que essa decisão não deve ser tomada, antes deixada para mais tarde, quando a pessoa já tiver uma noção sobre si. E poupá-la a situações de grande mal-estar, resultantes de intervenções não autorizadas sobre o seu corpo. Em Portugal, este assunto ainda é pouco discutido.
E qual seria o nome próprio? Em Portugal não temos praticamente nomes neutros.
Temos leis muito estritas. Elas determinam que o nome não pode suscitar dúvidas em termos de género. Depois há a questão da língua: a inglesa presta-se mais essa neutralidade, mas a portuguesa é muito pouco inclusiva. Há um pensamento binário na língua, na liberdade de dar um nome a uma criança e no regime dominante de género, que se exerce com a cumplicidade das autoridades médicas, entre outras instituições.
Como se muda esse cenário?
Começando por respeitar a dignidade humana: reportarmo-nos às pessoas pela forma como elas desejam ser designadas, sem entrar em juízos de valor. E assumir que a diversidade é uma mais-valia, um recurso que deve ser protegido, mais do que tolerado.
Há quem veja na proposta do FB uma estratégica dirigida aos jovens que, segundo um estudo, estariam a preterir esta rede em favor de outras. Quer comentar?
Esta é uma iniciativa meritória, sobretudo por permitir uma reflexão sobre algo que nunca é questionado. Basta pensar nos formulários preenchidos nas finanças, num consultório médico, que só têm duas opções e nem contemplam a possibilidade de “outros” [géneros]. À boleia do FB, há toda uma perplexidade que emerge: o que antes era considerado uma disforia de género, fica agora em pé de igualdade com outras categorias. O patamar que as torna equiparáveis é a auto identidade e isso tem um poder tremendo. Deixa de haver as legítimas e as outras. Simbolicamente, é um bom passo.
Ana Cristina Santos é coordenadora do projeto INTIMATE- Citizenship, Care and Choice: The Micropolitics of Intimacy in Southern Europe