Se num annus horribilis para as famílias portuguesas, passaram cerca de 35 mil pessoas pela arena do Campo Pequeno, em Lisboa, durante os três dias que durou o Mercado Gourmet, para comprar aos mais de 100 produtores nacionais presentes, que arriscar para 2014, o aclamado ano da retomada e da retirada da Troika?
No que à comida se refere, ninguém prevê um abrandamento do fascínio. “Embora exista muita gente em dificuldades para assegurar o básico, não houve assim tantas alterações dos hábitos alimentares das famílias”, nota Nuno Borges, da direção da Associação Portuguesa de Nutricionistas. Os sacrifícios estão a ser desviados para outras áreas.
E quem se vê impedido de experimentar os restaurantes, que não cessam de abrir nas principais cidades, faz refeições caseiras melhoradas. E passará a fazê-lo cada vez mais. Para auxiliar nessa tarefa, que hoje deixou de ser um frete ou de estar apenas a cargo das mulheres para ser cultural e unissexo, as livrarias enchem-se de obras da especialidade.
Os livros relacionados com gastronomia são muito procurados e as editoras sabem disso. No site da FNAC há mais de 200 títulos dedicados ao assunto, que ensinam técnicas e receitas, invariavelmente com nomes sonantes associados. O mais vendido, por exemplo, é A Minha Cozinha, da jornalista Clara de Sousa. O Cantinho do Avillez, da autoria do chef estrelado, está no terceiro posto. Na Porto Editora, por exemplo, o maior bestseller da área é ainda o Refeições em 15 minutos, de Jamie Oliver, apesar de já existir no mercado um novo título do chef britânico.
‘Cooking shows’
Haverá melhor barómetro de uma tendência do que aquilo que a televisão mainstream escolhe para captar espectadores? Os chamados cooking shows foram uma presença assídua em antena e, já se sabe, não vão desaparecer. O Chef’s Academy, que se estreou em novembro na RTP, continuará até fevereiro. A TVI anunciou que irá lançar, em março, o formato Masterchef (que já foi da RTP), pela mão de Manuel Luís Goucha. A SIC Mulher mantém a versão australiana como programa âncora, assim como a presença dos chefs Nigella, Chakal e José Avillez. Anthony Bourdain e Gordon Ramsay, duas estrelas globais da gastronomia, foram lançados em Portugal pela SIC Radical – e aí se irão manter. Para se organizar melhor, Pedro Boucherie Mendes, diretor dos canais temáticos, sentiu necessidade de criar, no seu computador, uma pasta só para agrupar os programas sobre comida. “Andamos sempre à procura: temos cerca de dez novos formatos para estrear em 2014 e assim se juntarem aos que já existem. Sentimos que há uma grande identificação do público.” Além disso, são baratos e fáceis de produzir, ideais numa altura em que o low cost é bem vindo. “Os cooking shows estão aí para ficar”, garante Pedro Boucherie Mendes.
Vontade de melhorar
Além dos programas relacionados com comida, existem dois canais temáticos exclusivamente dedicados às mais deliciosas iguarias: Food Network e 24 Kitchen. Este último faz questão de ter, pelo menos, quatro conteúdos produzidos em Portugal. Espera, por isso, que no próximo ano, a MEO – a única operadora que até hoje o mantém num pacote menos acessível – reconheça a importância do canal e o disponibilize a um maior número de assinantes. Em janeiro, entrará em produção o programa com a decana Filipa Vacondeus e já estão outros dois em fase avançada de criação de conceito. “Os portugueses têm muita apetência para estes conteúdos”, nota Margarida Blattmann, diretora de marketing. Não fala de cor: quando lançaram o canal, em 2011, fizeram um estudo de mercado que revelou a enorme importância que a comida tem na sociedade. Só 14% da população não gostava de cozinhar e, desses, apenas metade não sabia fazê-lo. Mais de 90% tinha, pelo menos, um livro sobre o tema e 40% mais de 10 volumes.
A vontade de aprender e melhorar a performance culinária é, de facto, notória. E com os salários e reformas a ficarem cada vez mais pequenos, comer em casa continuará a ser obrigatório no ano que agora começa. Se não houvesse mais nada que atestasse essa realidade, o número de máquinas Bimby que se venderam em novembro seria bem expressivo. Foram mais de cinco mil, um valor nunca antes atingido desde que a marca está em Portugal, coincidindo com o lançamento de outros robots de cozinha multifunções concorrentes, na grande distribuição. Em 2014 vão abrir novas delegações Bimby, em Leiria e na Madeira.
Haja saúde
“A gastronomia nunca deixará de estar na moda, faz parte da nossa cultura. Basta ver que ‘chocolate’ foi uma das palavras mais pesquisadas no Google”, diz o crítico Miguel Pires, um dos autores do blogue Mesa Marcada, especializado nestas matérias. Quando postaram, em novembro, a partir de Bilbao, quais tinham sido os merecedores das estrelas Michelin para 2014, receberam cerca de quatro mil visitas, quando num dia normal, os interessados rondam os mil. “As pessoas gostam destas notícias, ainda que a maior parte não possa frequentar os restaurantes dos chefs que recebem as estrelas.”
Para o ano, e apesar da “tentativa de assassinato que foi o aumento do IVA em 10 pontos na restauração”, Miguel Pires considera que os modelos vão continuar a reinventar-se, muito pelo lado retro, com versões mais informais e dignas. Ainda haverá petiscos e hambúrgueres para todos os gostos, até que sobrevivam apenas os melhores e apareça a próxima moda.
DEPOIMENTO – José Avillez, Chef de cozinha premiado com uma estrela Michelin
Tendência para menos gorduras
“Quando comecei nesta profissão, os cozinheiros eram vistos de maneira completamente diferente. Embora em França e Espanha já existisse esse endeusamento, desde há alguns anos. Se começámos mais tarde, e hoje os outros países que já o faziam ainda continuam nesse caminho, não há razão para duvidar que o culto vai permanecer. Seguramente, ainda temos um grande percurso pela frente. Para 2014, tudo aponta que a alta cozinha mundial vá evoluir, colhendo influências da América Latina e da China. Só que a tendência local e regional, sem tirar os olhos das técnicas do mundo, também não vai ser esquecida, para se conseguir fugir à globalização. Vai consolidar-se o tradicional bem feito e o moderno em ambiente descontraído, sempre com menos gorduras e melhores cozeduras. Já percebi que as cervejas artesanais vão ter um enorme potencial, com muito por onde explorar. Pela qualidade do nosso peixe, penso também que o ceviche poderá penetrar mais nos gostos dos portugueses.”