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Apesar de ter tirado a carta de condução aos 18 anos, Miguel Carvalho, agora com 34, nunca foi proprietário de um automóvel. Anda sempre de bicicleta, contribuindo assim para que haja, como diz o nome do blogue sobre mobilidade urbana que criou, “menos um carro” na cidade de Lisboa. Há uns tempos, escreveu um post sobre o campo de futebol, junto à casa do seu avô, em Benfica, no qual jogava à bola com os amigos de infância e que, entretanto, foi transformado em parque de estacionamento. “Mais um espaço estupidamente convertido”, diz o ciclista, numa linguagem pouco meiga, “para esse monstro sedento de espaço urbano que é o automóvel”.
Hoje, por volta das 9 da manhã, Miguel Carvalho sai de sua casa, na Avenida de Roma, para fazer um percurso de cerca de quatro quilómetros até à Universidade Católica, onde é professor na Faculdade de Economia. A pedalar, todas as manhãs, Miguel atravessa várias ruas cheias de carros, carros em circulação acelerada, carros a bloquear estacionamentos, carros parados em segunda fila, carros à procura de lugar para estacionar. Não é um radical, assegura que não quer “abolir o carro”. Apenas fazer “o que é feito no Norte da Europa” e, por exemplo, reduzir o estacionamento à superfície bem como as avenidas com dezenas de faixas de rodagem.
De bicicleta, de casa à universidade, Miguel Carvalho leva 12 minutos a fazer este seu trajeto diário. Os pés estão assentes nos pedais, as mãos no guiador, capacete na cabeça. E nós viajamos com ele pela faixa dos autocarros. Em segurança, é preciso que nos vejam. Um ciclista, explica Miguel, deve ser previsível, marcar bem a sua presença.
“A cidade está apinhada de estacionamento e não deixa espaço para o peão”, prossegue. E quando não está apinhada de estacionamento, está apinhada de túneis, viadutos, vias rápidas. Lisboa foi pensada, observa, em função dos automóveis. “Há pessoas que moram a 100 metros uma da outra mas, na realidade, não são vizinhos. Há uma autoestrada pelo meio, o que implica que, para ir a pé de uma casa à outra, seja preciso fazer um percurso de 15 minutos.”
Viver em nós rodoviários
O declive pode dificultar a vida aos ciclistas, mas não são apenas as colinas que fazem de Lisboa uma cidade difícil. São os semáforos, que os peões devem ultrapassar rapidamente, antes que o verde passe a vermelho num instante. São os pinos no meio dos passeios, que impedem o estacionamento, mas dificultam a passagem de quem anda numa cadeira de rodas ou de quem empurra um carrinho de bebé. São os largos que levam mais de 10 minutos a circundar a pé, como o Largo do Rato, atravessado por 11 faixas rodoviárias e justamente por isso muito pouco… largo. Ou as avenidas, como a da República, igualmente em Lisboa, com 14 faixas atribuídas aos automóveis, entre estacionamento e rodagem. “Numa avenida destas, ninguém vai varrer a rua”, nota Mário Alves, um engenheiro civil que sempre trabalhou na área da mobilidade urbana e transportes, membro da direção da Associação de Cidadãos Auto Mobilizados.
Com o crescimento dos subúrbios, aumentou, também, o número de carros que todos os dias entram e saem de Lisboa. Os dados recolhidos pela VISÃO (ver infografia) apontam para cerca de 425 mil automóveis a passar nas portagens das principais vias de acesso à capital. A este valor, os especialistas somam os veículos que passam por zonas sem portagens (como a IC19), calculando um total diário de 700 mil automóveis. “As classes mais abastadas e as classes médias perceberam que, por exemplo, um apartamento de 120 metros quadrados, em São Marcos, entre Sintra e Cascais, custava o mesmo preço que uma caixa de fósforos em Lisboa. Andariam mais de carro, transitariam pelo IC19 (que há 10, 15, 20 anos não era tão mau como hoje). E acabaram por aceitar esta troca de metros quadrados por gasolina”, descreve Mário Alves. E continua: “Quando se falava com alguém que não se encontrava há uns anos, perguntava-se onde é que vivia e a resposta era: ‘Vivo na Avenida de Roma ou na Praça de Londres’. Mas agora, quando encontramos alguém que já não víamos há muito tempo, a pessoa diz: ‘Vivo na segunda saída do IC19, vivo a norte da Segunda Circular’. As pessoas já não vivem em ruas e em praças, acabam por viver em nós rodoviários ou próximos de nós rodoviários.”
As cidades cresceram, as periferias aumentaram, Lisboa transformou-se numa metrópole. E uma metrópole, seja ela portuguesa seja americana, tenha ela vias rápidas ou highways, vive do asfalto e move-se a combustível entre drive-ins ocasionais. Mais de metade das nossas casas têm garagem, fazemos compras nos centros comerciais com estacionamentos subterrâneos (“em Portugal, as zonas pedonais são os shopings”, observa Mário Alves), em dez anos, duplicou o número de pessoas que utiliza o carro nas suas deslocações diárias casa-trabalho. Trata-se de uma mobilidade, explica o sociólogo e geógrafo João Seixas, “supostamente mais acelerada”. Mas, adverte o investigador do Instituto de Ciências Sociais, “o sonho é que é veloz”. Dados sobre a cidade de Londres indicam que, em 2005, na capital inglesa, circulava-se a uma média de 12 milhas por hora, exatamente a mesma velocidade a que se circulava… um século antes, em 1905. “Este fenómeno da dispersão urbanística é muito americano”, nota Mário Alves. E João Seixas conclui: “Todo o sonho (costuma dizer-se o american dream, mas também é um sonho europeu) de ter uma vivenda, piscina e jardim, está obviamente associado a grandes metrópoles, com subúrbios amplos à volta das cidades históricas tradicionais. Mas isso só é possível com a detenção pela família de um ou dois automóveis.”
Um prolongamento da casa
Nenhum dos especialistas ouvidos pela VISÃO pretende, de hoje para amanhã, eliminar o carro das cidades. Não podemos fazê-lo, avisa João Seixas, porque, em seu entender, Lisboa é “uma metrópole que depende absolutamente do automóvel”. O carro é como se fosse, afirma o arquiteto e urbanista Luís Vassalo Rosa, “um prolongamento da nossa casa”, através dele vemos uma cidade diferente. “A imagem da cidade, para uma pessoa dentro de um carro, é diferente da imagem da cidade para uma pessoa que anda a pé”, sustenta o responsável pelo plano urbanístico da Expo’98. O certo é que, independentemente de o automóvel continuar a ser um símbolo de ascensão social, a atual situação económica pode mudar o modo como os portugueses o veem. Se atentarmos nos anos mais recentes, nota-se uma diminuição do número de carros que entram em Lisboa diariamente. Na opinião de Vassalo Rosa, essa alteração já se tornou visível: “Neste momento, retorna-se aos meios mais suaves, deixando o carro de lado. Regressam o ciclista e o peão. O homem é inteligente e, por isso, escolhe sempre a solução que lhe é mais adequada. Acho interessante que, na China, com o boom económico e com o mercado a imperar, comece a haver um grande consumo de carro e enormes congestionamentos nas cidades.”
Terminamos a reportagem dentro de um automóvel, confortavelmente sentados ao lado da condutora Marta Rosado da Fonseca, arquiteta, 39 anos. Ao volante de uma carrinha Seat com mais de dez anos, Marta regressa ao Montijo, depois de um dia de trabalho, em Lisboa, na zona das Laranjeiras. Primeiro, o para-arranca das seis da tarde, na Segunda Circular. Depois, os 100 quilómetros/hora que lhe permitem chegar a casa a tempo de jantar com os filhos. É, aliás, por causa deles que Marta não abdica de ter carro, mesmo que seja velho, mesmo que em segunda mão. “O carro, para mim, é uma ferramenta e é fundamental em alturas que eu considero muito importantes: saber que posso pegar no carro para ir ter com o meu filho, se teve um problema na escola, saber que às duas da manhã posso ter que ir a um hospital…”
À hora de ponta, são precisos 45 minutos para fazer uma viagem de automóvel do centro de Lisboa ao centro do Montijo, 33 quilómetros. De transportes públicos, entre metro, barco e autocarro, Marta demoraria cerca de uma hora e meia por dia. “É muito tempo”, diz. O automóvel permite-lhe também carregar facilmente um computador portátil e, por vezes, ir ao supermercado, antes de chegar a casa. (Entretanto, a meio da viagem, começou a chover… “Claro que esta é a parte – a da chuva – em que ficamos gratos por estar dentro de um carro”, comenta.) Já pensou organizar um sistema de partilha de boleias entre vizinhos que façam o mesmo percurso Montijo-Lisboa/Lisboa-Montijo, mais ou menos às mesmas horas. “Se olharmos em volta, vemos que cada carro não traz mais do que uma pessoa, o que realmente não faz sentido”, justifica. Marta também aproveita o tempo da viagem de regresso a casa para efetuar o balanço do dia e planear o que ainda tem para fazer. Viaja sempre sozinha, a ouvir rádio, esse pequeno prazer de quem passa uma boa parte do dia dentro de um automóvel.