O diretor de uma equipa de inspeção de unidades de saúde está habituado a ouvir os relatos mais bizarros. Joaquim Brandão, membro do Conselho Diretivo da Entidade Reguladora da Saúde (ERS), não foge à regra. Certo dia, recebeu uma chamada telefónica que nunca mais esqueceu. Do outro lado da linha, uma jurista descreveu-lhe um episódio inédito que ocorrera durante uma operação de fiscalização a uma clínica dentária. “O dentista que estava a tratar um paciente transfigurou-se assim que viu a nossa equipa”, conta Joaquim Brandão. “Despiu a bata, atirou-a para longe e agarrou-se a uma esfregona a limpar o chão.” A atitude invulgar foi mais tarde contextualizada, quando o falso médico confessou aos fiscais que não tinha habilitações para exercer a profissão. “Também há casos em que os dentistas fogem pelas janelas…”
Desde 2010, a ERS recebeu 2 124 queixas relacionadas com a atividade de clínicas dentárias ou de médicos dentistas. As 435 ações de fiscalização realizadas deram origem a 690 coimas e à suspensão de 17 consultórios. “Nos últimos anos, intensificou-se a fiscalização. Apenas dessa forma se pode assegurar que a confiança dos doentes não é frustrada”, refere Orlando Monteiro da Silva, bastonário da Ordem dos Médicos Dentistas.
Nos últimos meses, foram publicadas várias notícias sobre irregularidades cometidas por médicos e empresários de clínicas dentárias. A saber: utilização de medicamentos fora de prazo, reutilização de material descartável, más condições de higiene e até indícios de burla aos pacientes. “Atualmente, estão em curso 200 processos disciplinares contra médicos dentistas [no total há cerca de 7 400]”, revela o bastonário.
Em Portugal existem 5 252 consultórios registados – e 690 ainda não se encontram licenciados (o processo iniciou-se apenas em 2009). Os doentes podem confirmar a legalidade dos espaços, fazendo uma pesquisa através da página de internet da ERS ou, sugere Orlando Monteiro da Silva, “estar atentos ao dístico de licenciamento que deve estar afixado na clínica”.
Pacientes ou clientes?
Rosa Silva, 33 anos, considera-se uma pessoa bem informada e atenta – é jornalista freelancer – mas confessa que se sentiu de mãos atadas quando se submeteu a um tratamento dentário mal sucedido. O médico pediu-lhe 2 500 euros pela colocação de um aparelho fixo e as consultas de manutenção. Dois anos depois, os dentes regrediram. “O dentista pretendia cobrar por um novo aparelho”, conta Rosa Silva, natural de Viseu. “Só após muita discussão é que consegui convencê-lo de que isso não fazia sentido. Hoje, sei que o médico estava a tentar enganar-me.”
A jornalista mudou-se, entretanto, para Lisboa e só após muitas pesquisas é que conseguiu escolher um novo médico-dentista: inscreveu-se na clínica da Faculdade de Medicina Dentária. “Acredito que aqui sejam respeitadas todas as regras deontológicas e éticas”, diz, enquanto entra numa das 42 boxes, distribuídas ao longo de uma enorme sala.
Os cubículos não têm portas e estão separados por paredes com apenas um metro de altura. O médico que a vai tratar é João Aquino Marques, diretor da instituição e presidente do conselho deontológico da Ordem. Calça as luvas, retira o kit de observação, previamente esterilizado, e coloca uma máscara. Tudo antes de tocar na boca da paciente. Durante a consulta, explica o que está a fazer, e quais as melhores soluções de tratamento. “Dentro de uma clínica, as pessoas têm de ser encaradas mais como pacientes e menos como clientes”, defende. “Os médicos-dentistas que também são gestores do negócio devem ter especial atenção a este princípio.”
Lurdes Vaz coordena as 40 mil consultas anuais prestadas na clínica da faculdade. Diz que grande parte dos doentes que ali se deslocam já foram alvo de tratamentos desajustados. “Em muitas situações, somos obrigados a refazer tudo, porque detetamos erros grosseiros que só podem resultar de negligência ou má-fé”, revela a médica-dentista.
Para evitar episódios do género, o plano pedagógico da licenciatura nesta especialidade impõe o domínio de princípios éticos, deontológicos e de higiene oral logo a partir do primeiro ano, explica João Aquino Marques. A matéria é reforçada, mais tarde, no quinto ano, na cadeira sobre gestão de clínicas dentárias. “Os pacientes, quando se dirigem a um consultório, fazem-no numa situação de vulnerabilidade, e muitos não estão sequer em condições de tomar decisões sobre tratamentos mais complicados e dispendiosos”, admite João Aquino Marques. “O médico tem de ser amigo dos doentes e perceber todos esses detalhes.”
Os riscos da implantomania
O bastonário reforça que a maioria dos profissionais cumpre as regras, e que os problemas foram detetados num número reduzido de clínicas. “Tomara outros setores da saúde terem um processo de licenciamento tão avançado como o nosso”, sublinha.
A higienista Fátima Duarte, 49 anos, concorda com o bastonário mas defende que a fiscalização não pode parar. E conta que já se viu forçada a abandonar uma clínica dentária depois de ser confrontada com um pedido inesperado. “O gestor pretendia que os aspiradores de saliva fossem reutilizados entre pacientes, algo que vai contra as regras, porque representa um risco de infeção.”
A também presidente da Associação dos Higienistas Orais confessa que gostaria de integrar um grupo de inspetores. “Conheço bem a realidade e sinto-me revoltada com algumas situações. Existem clínicas que têm kits esterilizados de reserva apenas para exibir aos fiscais, mas, no dia a dia, os utensílios são desinfetados apenas com toalhitas.”
A proliferação de clínicas low-cost, sobretudo nos grandes centros urbanos, trouxe a aplicação de técnicas de marketing que habitualmente não estavam associadas a dentistas. O fenómeno das consultas gratuitas para atrair clientes preocupa, e de que maneira, Orlando Monteiro da Silva, bastonário da OMD. “Ninguém acredita que um local aberto ao público não pretende obter retorno do investimento…Os atos gratuitos são já punidos pela Ordem, embora só possamos atuar contra os médicos e não contra as empresas”, explica o bastonário.
Em algumas clínicas, os pacientes sentem que entram numa espécie de linha de montagem. O circuito começa na receção, onde há panfletos publicitários relativos aos mais variados produtos e tratamentos, terminando muitas vezes dentro do gabinete com a assinatura de um empréstimo financeiro. “Alguns médicos chegam a pedir o pagamento antecipado de quantias elevadas”, relata Ana Sofia Ferreira, jurista da DECO. “Quando os consumidores pretendem interromper o procedimento, porque sentem que está a correr mal, acabam por não o fazer com receio de não reaver o dinheiro.”
Há tratamentos dentários, como é o caso dos implantes, que custam largos milhares de euros. Especialmente nesses casos, os dentistas devem promover uma reflexão conjunta com os pacientes. “É até aconselhável que apresentem várias soluções”, explica João Aquino Marques. “E sempre que o tratamento é mais complexo e envolve muito dinheiro, têm de dar tempo de decisão ao doente, deixá-lo à vontade para pedir uma segunda opinião, por exemplo.” No caso dos implantes, isso torna-se ainda mais premente. “Existiu, durante algum tempo, a implantomania, como se fosse o único tratamento disponível. Agora, dez anos depois, sabe-se que esse método também traz complicações”, revela o diretor da Faculdade de Medicina Dentária.
Dentistas explorados
Atualmente, existem 7 419 dentistas inscritos na Ordem – o rácio é de um médico por 1 503 habitantes. O excesso de oferta sente-se na lista de espera de profissionais que pretendem trabalhar na clínica da faculdade, por exemplo, mas também nas más condições de trabalho impostas por alguns grupos económicos.
Há empresas que pagam apenas 15% do valor da consulta e promovem a rotatividade frequente de clínicos para que não haja contestatários, sobretudo quando se trata de diretores clínicos. Segundo a lei, os médicos que exercem essas funções são responsáveis pelo cumprimento das regras deontológicas e de higiene, e, muitas vezes, transformam-se num obstáculo às intenções meramente mercantilistas dos donos das empresas. Noutros casos, são os próprios médicos a promoverem esses comportamentos.
Recentemente, a Ordem decidiu expulsar o diretor clínico da empresa Dental Group, depois de detetar várias irregularidades graves. O dono das oito clínicas foi forçado a fechar os espaços, acabando por pedir insolvência. Este ano, das ações de fiscalização resultaram onze suspensões de atividade em Faro, Loulé, Lisboa, Oeiras e Figueira da Foz. “Nota-se que a profissão está a perder dignidade, o que só pode dar mau resultado”, alerta João Aquino Marques. Talvez essa seja uma das razões que levaram cerca de 300 profissionais a exercer a atividade no estrangeiro. Os doentes, esses, não têm para onde fugir.